Como estruturar empreendimentos mistos
Fonte: Revista Construção e Mercado, Ed. 132, Julho 2012
Advogada esclarece dúvidas sobre o registro de incorporação, a convenção de condomínio e o modelo de gestão para empreendimentos de uso misto.
Atendendo a uma crescente demanda do mercado imobiliário, as incorporadoras vêm apresentando os chamados empreendimentos mistos ou mixed use. Esse modelo de empreendimento busca oferecer opções de moradia nos bairros em que normalmente só havia locais de trabalho ou vice-versa, sempre atendendo a busca de facilidades que caracteriza a vida moderna, tornando possível morar, trabalhar e se divertir no mesmo local. Há dois aspectos essenciais para a compreensão dessa modalidade de empreendimento: o aspecto jurídico e o aspecto operacional. Com isso, será possível identificar as dificuldades e eventuais soluções jurídicas para problemas relacionados, por exemplo, ao registro cartorário e à convenção de condomínio dos empreendimentos mistos.
Importa inicialmente destacar que a peculiaridade mais importante destes empreendimentos é a sua complexidade funcional, ou seja, eles reúnem em uma mesma incorporação imobiliária torres com apartamentos residenciais, torres com conjuntos comerciais e também torres que abrigam unidades imobiliárias para hotéis e espaços de lazer, como lojas, restaurantes, cinemas, teatros, salas culturais, entre outros. Além disso, junto aos shoppings centers já existentes estão surgindo empreendimentos imobiliários que aproveitam esta estrutura para atrair investidores. Algumas vezes, por necessitarem de grandes terrenos para se viabilizarem, a alternativa para o lançamento do empreendimento misto nas grandes cidades surge com a revitalização de hotéis e shoppings que se encontram em baixa ou já ultrapassados, agregando novos valores e propiciando novos empreendimentos imobiliários nestes locais, muito mais modernos e adequados.
Para uma compreensão adequada do tema, é preciso analisar como essa nova realidade pode ser oferecida ao mercado dentro do que determina a legislação atual, tanto no que se refere às incorporações imobiliárias quanto aos condomínios, e também como tudo isto deve ser administrado dentro dos conceitos atuais de gestão. Seguindo essa linha de raciocínio, podemos abordar os empreendimentos de uso misto sob dois enfoques, considerando (a) o aspecto jurídico da estruturação complexa deste tipo de empreendimento; (b) o aspecto operacional do gerenciamento das diversas atividades a serem previstas para o seu funcionamento de forma adequada.
Subcondomínios e fração ideal
No aspecto jurídico, a grande questão a ser colocada se refere às soluções para facilitar a administração destes empreendimentos. Primeiramente, sublinha-se a importância da divisão do empreendimento em subcondomínios, tratando-se de medida convencional cujo objetivo é a sua melhor organização e gestão. Ao adotar essa perspectiva, o incorporador deverá criar mecanismos para garantir a autonomia entre os subcondomínios, a fim de que possam ser administrados de forma independente, de acordo com cada uma das necessidades, convergindo para o fato de que eles constituem um empreendimento único.
Em segundo lugar, e seguindo essa primeira orientação, já na elaboração da planilha de áreas pelo incorporador (NBR 12.271) podem-se definir os critérios para o cálculo da fração ideal das unidades autônomas. Estes critérios não são necessariamente os mesmos em todo o “conjunto da edificação”, havendo atualmente apenas a exigência legal de que a fração ideal seja expressa na forma decimal ou ordinária, conforme dispõe o artigo 1.331, §3°, do Código Civil. Em outros termos, o legislador permitiu que a fração ideal seja atribuída às unidades autônomas de acordo com o caso concreto, sendo possível aproximá-la da justa definição física da propriedade, através de critérios que atendam às dimensões econômicas e jurídicas do direito de cada condômino.
Nesse modelo de empreendimento imobiliário, fica evidente que a harmonia dos interesses dos condôminos não se traduz na aplicação de um critério único, devendo ser observadas as características peculiares de cada empreendimento. Assim, com o objetivo de definir o critério a ser utilizado para cálculo da fração ideal, podemos citar três fatores, quais sejam: a propriedade, o poder político e o custeio. Dependendo do tipo de empreendimento, podem-se levar em conta todos estes fatores, afastando o procedimento tradicional, no qual se considera apenas a fração ideal de acordo com a área de propriedade de cada condômino. Veja-se que o critério a ser adotado revela um conteúdo valorativo que remete à ideia de justa proporção. Portanto, ao se adotar um critério justo para o rateio de despesas, está-se, em verdade, buscando assegurar uma justa medida para esta divisão, considerando-se distintos valores, como o valor espacial (geométrico), o valor de uso do bem, o valor político, o valor econômico, entre outros.
Decorre daí outro problema. Como se estabelece a segurança jurídica na criação de subcondomínios e na definição dos critérios de rateio das despesas condominiais? É preciso destacar aqui a importância do seu registro junto ao memorial de incorporação e na minuta da convenção de condomínio, depositados junto ao Registro de Imóveis competente, pois ali deve estar prevista a possibilidade de constituição dos subcondomínios e as suas regras específicas. Ou seja, deve-se obedecer ao que dispõe a Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964 – Lei de Condomínios e Incorporações Imobiliárias –, com a apresentação e o registro de toda a documentação exigida pelo dispositivo legal. Por se tratar de empreendimento complexo, o empreendimento misto está sujeito a um grande número de detalhamentos que dependem de uma avaliação jurídica em cada caso concreto.
Modelo de gerenciamento
Quanto ao aspecto operacional, pelo fato de reunirem usos e convivências diversas, esses empreendimentos devem ter seu modelo de gerenciamento muito bem estruturado desde a concepção do projeto, evitando-se com isso problemas durante a sua administração. Considerando o universo de pessoas habitando o mesmo local, os conflitos são previsíveis, ainda mais quando há diversidade de interesses muitas vezes antagônicos daqueles que lá irão conviver. Nos casos residencial e comercial, as necessidades mostram-se diversas de acordo com o uso de cada condomínio, mas, justamente, devem e podem ser buscadas formas de minimizar os antagonismos.
Dessa forma, os empreendimentos mistos, pela sua complexidade, devem ser muito bem regrados desde a sua concepção para que os condôminos não enfrentem problemas posteriores, que não poderiam ser resolvidos pelas regras gerais, muitas vezes sem a adequada previsão de conflitos condominiais. A Convenção de Condomínio deve ser apropriada à realidade existente e, por esta razão, além do que determina o Código Civil, novas regras convencionais podem ser criadas para atender esta realidade, desde que não sejam contrárias à legislação vigente. Em especial, deve ser prevista a forma de funcionamento de todas as facilidades que são oferecidas por ocasião do lançamento destes empreendimentos, atendendo àquelas expectativas que são “vendidas”.
Para gerenciamento desta operação complexa e atendimento à nova demanda, é necessário um profissional com múltiplos conhecimentos e atuações, bem como uma equipe multidisciplinar. Todos os processos de gerenciamento devem estar 5 integrados e a infraestrutura precisa ser adequada aos serviços que são oferecidos dentro do condomínio, sempre buscando a minimização dos conflitos.
O que se pode inferir, à guisa de conclusão, é que os empreendimentos mistos demandam uma atenção especial quanto aos seus aspectos jurídicos e operacionais. Para o seu mais correto funcionamento, esta modalidade de empreendimento depende de uma estrutura jurídica adequada, com a sua divisão em subcondomínios e com a adoção de um critério proporcional de rateio das despesas condominiais, pautado no conjunto de valores a serem considerados em cada caso. Além disso, o empreendimento misto exige um modelo de gestão atual, contando com equipes multidisciplinares para atender todos os interesses envolvidos. Certo é que a segurança jurídica nesse tipo de empreendimento se alcança já na ocasião do registro do memorial de incorporação e da minuta da convenção de condomínio, levado a cabo pela incorporadora.