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Responsabilidade das instituições financeiras em mútuos concedidos no âmbito do SFH segundo a hermenêutica do Superior Tribunal de Justiça

Por: Fabio Caprio Leite de Castro
28/01/2013

Uma questão jurídica que tem sido alvo de confrontação judicial no âmbito do Sistema Financeiro de Habitação diz respeito à responsabilidade das instituições financeiras diante de problemas relacionados à unidade financiada, como vícios construtivos, atraso ou paralisação das obras. O objetivo deste breve artigo é analisar esta responsabilidade de acordo com a atuação da instituição financeira na contração do mútuo, avaliando a já assentada hermenêutica do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema.

O Sistema Financeiro de Habitação foi criado pela Lei nº 4.380/64 com o objetivo de estabelecer novas diretrizes de uma política nacional de habitação e de planejamento territorial, visando coordenar a ação dos órgãos públicos com a iniciativa privada para estimular a construção e financiamento de unidades habitacionais, especialmente voltadas para a população de menor renda. No art. 3º do referido diploma legal está previsto que os órgãos federais “exercerão de preferência atividades de coordenação, orientação e assistência técnica e financeira”. Ou seja, a lei criou um sistema para financiar a construção de unidades habitacionais, com um aparelhamento administrativo destinado ao controle e fiscalização do uso dos recursos, estando o legislador ciente de que seria necessária a coordenação e orientação dos projetos em todo território nacional. Dentre os órgãos responsáveis pela intervenção no setor imobiliário nacional, a Lei nº 4.380/64, em seu art. 2°, I, criou o Banco Nacional de Habitação (BNH), autarquia federal que, por meio de Resoluções do Conselho de Administração, regulava o acompanhamento das atividades relacionadas à execução dos projetos, como a fiscalização e a vistoria das obras.

Em 1971, o BNH foi transformado em empresa pública, por meio da Lei nº 5.762/71. Mais tarde, em 1986, o BNH foi incorporado pela Caixa Econômica Federal (CEF) tornando-se legítimo sucessor de seus direitos e obrigações, conforme o art. 1°, §1°, do Decreto-Lei nº 2.291/86. As atribuições administrativas e a atividade fiscalizadora inerente ao BNH foram transmitidas, respectivamente, ao Conselho Monetário Nacional e ao Banco Central, através do art. 7º e do art. 8º do mesmo Decreto-Lei.[1] O Sistema Financeiro de Habitação dispõe, dessa forma, de administração e fiscalização próprias, reguladas por legislação nacional específica, com a incumbência de promover e facilitar a compra, a reforma ou a construção de casa própria por pessoas de baixa renda.

O entendimento construído ao longo dos anos no Superior Tribunal de Justiça foi o de que o agente financeiro é responsável pela solidez e segurança de imóvel cuja obra fora por ele financiada, seja em ações de cobrança de seguro, seja em ações de indenização.[2] No entanto, a partir de 2009, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça sinalizou modificação de entendimento, afirmando que a CEF não seria parte legítima para responder por vícios de construção do imóvel através do SFH em demanda redibitória.[3] A tensão criada pelo novo posicionamento somente se dissipou com três julgamentos da mesma Turma.

Nos últimos dois anos, a 4ª Turma do STJ procurou alicerçar o entendimento de que a responsabilidade da instituição financeira pela entrega do imóvel depende do tipo da sua atuação no âmbito do SFH. Se a instituição financeira atua somente como agente financeiro, a sua responsabilidade restringe-se à liberação de recursos para a construção. De outro lado, se a instituição financeira atua como agente executor de políticas federais para a promoção de moradias populares, o entendimento é de que ela é responsável pelo controle e fiscalização da construção, razão pela qual é parte legítima para figurar em ações que digam respeito a vícios construtivos e defeitos no imóvel.

No Recurso Especial nº 738.071/SC, julgado em 09 de agosto de 2011, o Relator Ministro Luis Felipe Salomão manifestou entendimento de que “a fiscalização da CEF – ainda quando não impulsiona a obra como agente financiador, mas como mera gestora do FGTS – não se resume simplesmente à verificação do cumprimento de cronogramas, mas sobretudo exerce fiscalização técnica” (p. 15-16)[4], o que seria reforçado pela ótica do consumidor. Em voto-vista, a Ministra Maria Isabel Gallotti expôs o entendimento de que o exame da responsabilidade do agente financeiro depende do seu regime de atuação no SFH. Nesse mesmo sentido, foram julgados posteriormente dois casos pela 4ª Turma (REsp nº 1.102.539/PE e REsp nº 1.163.228/AM), ambos de relatoria da Ministra Maria Isabel Gallotti, mantendo este mesmo entendimento:

“A questão da legitimidade passiva da CEF, na condição de agente financeiro, em ação de indenização por vício de construção, merece distinção, a depender do tipo de financiamento e das obrigações a seu cargo, podendo ser distinguidos, a grosso modo, dois gêneros de atuação no âmbito do Sistema Financeiro de Habitação, isso a par de sua ação como agente financeiro em mútuos concedidos fora do SFH (1) meramente como agente financeiro em sentido estrito, assim como as demais instituições financeiras públicas e privadas (2) ou como agente executor de políticas federais para a promoção de moradia para pessoas de baixa ou baixíssima renda.”[5]

Dentro do regime do SFH, as possibilidades de atuação das instituições financeiras são bastante diversificadas, dependendo tanto do objeto do financiamento quanto dos programas de financiamento existentes. A questão que se coloca refere-se à amplitude da responsabilidade a ser assumida pela instituição financeira conforme o tipo de contrato firmado.

Segundo o argumento exposto pela Ministra Maria Isabel Gallotti em seus votos, podem-se distinguir dois modelos de atuação do agente financeiro. Em uma atuação estrita, a instituição financeira pode conceder um mútuo no âmbito do SFH, meramente na condição de agente financeiro, ou seja, como entidade bancária submetida às regras especiais do SFH no que tange ao crédito imobiliário. Dessa forma, a instituição financeira atua como agente financeiro em sentido estrito para promover a compra, a reforma ou a construção do imóvel, em regra sem possuir outras obrigações para além da concessão do mútuo. Por outro lado, se a instituição financeira atua não apenas como agente financeiro, mas também como agente executor de políticas federais para a construção de moradias populares em um dos programas do SFH, notadamente haverá aqui uma responsabilidade de outra ordem, que não se esgota na mera atividade financeira do Banco.

Não há dúvida, portanto, mesmo segundo o entendimento da Ministra Maria Isabel Gallotti, que nos programas de política habitacional social, configura-se a responsabilidade da CEF. Dentre esses programas, podemos citar o Programa de Arrendamento Residencial (PAR), criado pela Lei nº 10.188/2001[6], e o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), criado pela Lei nº 11.977/2009[7], que inclui o Programa Nacional de Habitação Urbana (PNHU) e o Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR). A operacionalização do Programa de Arrendamento Residencial e a gestão operacional do Programa Minha Casa Minha Vida são feitas pela CEF, por determinação legal. Nesses programas, a CEF desempenha inegavelmente um papel diferenciado, como fiscalizadora, além de agente financeira.

É preciso sublinhar que a implementação de políticas públicas para a construção de imóveis populares tem se mostrado um importante vetor na solução do problema habitacional em território nacional. Segundo dados oficiais do último Balanço do PAC 2 (maio/setembro 2012), do Ministério do Planejamento, a “Urbanização de Assentamentos Precários” alcançou a média de 57% de execução, entre 2007 e 2009, e o programa “Minha Casa Minha Vida” já entregou 48% do 1,96 milhão de unidades contratadas desde o início do programa em 2009 até junho de 2012.[8]

Em um número tão significativo de contratações e de construções pelo Programa Minha Casa Minha Vida, podem ocorrer os mais variados tipos de problemas, como o aparecimento de vícios construtivos no imóvel, o atraso na entrega das unidades ou mesmo a paralisação das obras. É aqui, portanto, que se configura a importância da questão sobre a legitimidade da Caixa Econômica Federal para figurar no polo passivo de uma ação de indenização por inadimplemento (como o atraso, a paralisação ou vícios construtivos) ajuizada pelo adquirente.

Podemos verificar, portanto, que o Superior Tribunal de Justiça vem reforçando há dois anos o entendimento de que a Caixa Econômica Federal possui legitimidade para responder em ações que dizem respeito ao adimplemento do contrato de compra e venda de imóveis, quando ela exerce o papel de agente executor de políticas federais. Não basta, portanto, que o contrato seja assinado no âmbito do SFH. É preciso averiguar, em cada caso, seguindo-se a hermenêutica do Superior Tribunal de Justiça, o papel exercido pela instituição financeira relativamente ao empreendimento, por força das determinações legais e contratuais.


[1] Em 1993, através da Resolução n° 1.980/93, o Conselho Monetário Nacional aprovou o Regulamento que “disciplina o direcionamento de recursos captados pelas entidades integrantes do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE) cuja destinação básica sejam financiamentos habitacionais, bem como as operações de financiamento efetuadas no âmbito do Sistema Financeiro de Habitação (SFH)”. O art. 1º desse regulamento definiu os Agentes Financeiros integrantes do SFH, cujo texto foi posteriormente alterado pela Resolução nº 3.157/2003. O texto atual do Regulamento arrola como Agentes Financeiros integrantes do SFH:  “os bancos múltiplos com carteira de crédito imobiliário, as caixas econômicas, as sociedades de crédito imobiliário, as associações de poupança e empréstimo, as companhias de habitação, as fundações habitacionais, os institutos de previdência, as companhias hipotecárias, as carteiras hipotecárias dos clubes militares, as caixas militares, os montepios estaduais e municipais e as entidades de previdência complementar”. E, ainda, no seu Parágrafo único: “Para o caso específico de operações na área de saneamento, consideram-se integrantes do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), na qualidade de agentes financeiros, as instituições financeiras não expressamente referidas no caput. Da mesma forma, a Resolução nº 1.980/1993 definiu os integrantes do SBPE:

“O sistema brasileiro de poupança e empréstimo (SBPE) é integrado pelos bancos múltiplos com carteira de crédito imobiliário, pelas caixas econômicas, pelas sociedades de crédito imobiliário e pelas associações de poupança e empréstimo”.

[2] O paradigma deste entendimento encontra-se no REsp. n° 51.169/RS: “CIVIL. RESPONSABILIDADE DO AGENTE FINANCEIRO PELOS DEFEITOS NA OBRA FINANCIADA. A obra iniciada mediante financiamento do Sistema Financeiro de Habitação acarreta a solidariedade do agente financeiro pela respectiva solidez e segurança. Recurso especial conhecido, mas improvido”. (REsp 51.169/RS, Rel. Ministro Ari Pargendler, 3ª Turma, julgado em 09/12/1999, DJ 28/02/2000).

Outro exemplo claro desse posicionamento, que se articula dez anos depois do aresto citado, é o AgRg no Ag 1.091.396/PE, de relatoria do Ministro Sidnei Beneti, 3ª Turma do STJ, cuja decisão foi publicada no DJe em 29/06/2009.

[3] Cf. REsp 950.522/PR, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma do STJ, julgado em 18/08/2009, publicado em 08/02/2010. Embora o Relator tenha adotado entendimento diverso, a 4ª Turma sustentou o posicionamento de que a CEF não seria parte legítima em demandas redibitórias.

[4] Cf. Resp 738.071/SC, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma do STJ, julgado em 09/08/2011, publicado em 09/12/2011, p. 15-16.

[5] Cf. REsp 1102539 / PE; 4ª Turma; Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO; Relatora p/ Acórdão: Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI; julgado em 09/08/2011, DJe 06/02/2012.

[6] As principais alterações da Lei nº 10.150/2000 foram feitas pela Lei nº 10.859/2004, que transfere a gestão do programa ao Ministério das Cidades, bem como pela Lei nº 11.474/2007 e pela Lei nº 12.693/2012, que alteram algumas regras do programa.

[7] Alterada pela Lei nº 12.424/2011.

[8] PAC 2 – O círculo virtuoso do desenvolvimento: 5º Balanço (maio/setembro 2012). Disponível no site do Ministério do Planejamento: http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/Arquivos/PAC2 /p/p00.pdf, p. 151 e ss.

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