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Os novos rumos da Hipoteca no âmbito da Incorporação Imobiliária

Por: Roberto Santos Silveiro
19/08/2013

É inegável que a garantia hipotecária, vem, paulatinamente, perdendo força e cedendo espaço para outras garantias mais eficazes, sobretudo em face da Lei nº 9.514/1997, que instituiu, dentre outras inovações, o instituto da alienação fiduciária em garantia, o qual garante maior proteção ao crédito, e viabiliza, em caso de inadimplência, a rápida recuperação do crédito pela instituição financeira.

Todavia, ao contrário do que se poderia imaginar, a garantia hipotecária segue exercendo papel importante no âmbito da incorporação imobiliária. É fato que os contratos de financiamento para alavancar a construção do empreendimento imobiliário, celebrado entre o incorporador e o agente financeiro, permanecem encontrando na hipoteca do próprio terreno e das unidades imobiliárias a serem sobre ele construídas a garantia a ser executada em caso de inadimplemento do incorporador. Salienta-se que na alienação fiduciária em garantia, ao contrário da hipoteca, o imóvel é transmitido ao credor (transmissão da propriedade fiduciária), situação esta que não se coaduna com o microssistema da incorporação imobiliária, na qual quem vende as unidades é o incorporador, que deve, portanto, conservá-las em seu domínio.

 O tema ganha, ainda, contornos de atualidade e exige redobrada atenção de todos que participam do microssistema da incorporação imobiliária em face da possível reviravolta quanto à propagada e generalizada ineficácia da hipoteca (decorrente do enunciado nº 308 da Súmula do STJ). Vejamos.

Como sabido, a hipoteca, enquanto direito real que é, seria oponível contra todos e dotada do direito de sequela, seguindo o bem, portanto, independentemente de quem o possua. Dessa forma, a garantia hipotecária do terreno e das suas futuras unidades daria, em tese, a segurança jurídica que os agentes financiadores necessitam para os financiamentos imobiliários em geral. Ocorre que, no âmbito do microssistema da incorporação imobiliária, tais características, que são ínsitas ao milenar instituto, restaram relativizadas pela jurisprudência pátria. No ano de 2001, o Superior Tribunal de Justiça editou o enunciado nº 308, o qual reza que “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”.

Referido enunciado veio como resposta a um conflito repetitivo nos Tribunais: em caso de inadimplência da construtora com o agente financeiro, o que prevaleceria: o direito de crédito da instituição financeira que concedeu o empréstimo ao incorporador mediante garantia hipotecária das próprias unidades, ou o direito dos terceiros adquirentes que pagaram o preço do imóvel para a incorporadora, na expectativa de recebê-los, ao final, livres de ônus?

Tratando-se de matéria de ordem federal, a resposta haveria de ser dada pelo Superior Tribunal de Justiça. Na esteira da decisão paradigmática sobre a matéria, da lavra do Eminente Ministro Ruy Rosado (Resp nº 187.940, publicado no DJ em 21.06.1999), consolidou-se na Corte Superior o entendimento de que as regras gerais sobre a hipoteca não se aplicam no caso de edificações financiadas por agentes imobiliários integrantes do Sistema Financeiro da Habitação. Segundo a decisão “dos três personagens que participaram do negócio; dois com intuito de lucro (portanto, correndo riscos) e um com o propósito de adquirir a casa própria, os dois primeiros negligentes e inadimplentes, não pode perder o terceiro que adquiriu e pagou.” De acordo com o entendimento jurisprudencial prevalente, havendo venda, a garantia da sociedade de crédito imobiliário passa a incidir sobre os direitos decorrentes dos contratos de alienação das unidades habitacionais integrantes do projeto financiado (art. 22 da lei 4.864/65) e não mais sobre as unidades.

A construção jurisprudencial visou, declaradamente, proteger o adquirente da casa própria, parte mais fraca da relação. Não se pode perder de vista, ainda, o caráter social do enunciado nº 308 da súmula do STJ, sobretudo em face do momento pelo qual passava a construção civil. Não foi por coincidência que a “queda da hipoteca” decretada com a edição da súmula no ano de 2001 se deu contemporaneamente à falência da Encol (março/1999), maior construtora do País à época. Outro fosse o entendimento jurisprudencial, consequências desastrosas adviriam para os milhares de mutuários da Encol, os quais perderiam as suas casas para os credores hipotecários. Protegeu-se, portanto, em última análise, o direito à moradia.

Muito embora as substanciosas razões que o justificam, tal construção jurisprudencial vem sendo, desde então, alvo de pesadas críticas. Umas de cunho estritamente jurídico como a de que “A hipoteca é, tecnicamente, um direito real e, como tal, é oponível contra todos (erga omnes), inclusive contra o comprador (se não for assim, não é hipoteca!)” (Bruno Mattos e Silva. Hipoteca Ineficaz. Análise crítica da súmula 308 do STJ), e outras de caráter social e econômico. Dentre elas, destacamos as palavras de Romitti & Dantas Júnior (citada na obra de Beatriz P. de S. Marques, Luiz Henrique de O. Marques e José de S. Marques. Os rumos da hipoteca diante da súmula 308 do STJ) as quais sintetizam boa parte das críticas ao enunciado: “Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, essas decisões não atendem ao interesse social. Com efeito, resolvem um problema, mas geram outro muito maior: é que, se a garantia hipotecária não mais der segurança ao credor, os financiamentos simplesmente tenderão a desaparecer do mercado, com óbvias e desastrosas consequências sociais. Resguarda-se a moradia de uma pessoa, mas em troca, causa-se o prejuízo de milhares de outras, uma vez que milhares de imóveis deixarão de ser construídos por falta de financiamento.

Ainda, segundo as críticas que recebe, o enunciado nº 308 generaliza a inoponibilidade da hipoteca aos adquirentes de imóveis. Não há qualquer referência ou limitação à sua aplicação. Tratou, é verdade, a jurisprudência ao longo do tempo de fazer uma única e pontual distinção: a aquisição de imóveis comerciais. Não se tratando de imóveis destinados a moradia, estes não merecem a mesma proteção especial conferida aos imóveis residenciais.

Para os que acompanham a matéria, até aí nenhuma novidade. O fato novo – e porque não dizer surpreendente – é que recentemente o Superior Tribunal de Justiça, ao receber mais um dos tantos recursos que tratam da matéria, afetou o julgamento da matéria à Segunda Seção, nos termos do art. 543-C do CPC.  O relator do processo REsp nº 1.175.089/MG, Min. Luis Felipe Salomão, justificou “haver multiplicidade de recursos a versar sobre o tema tratado nos autos, alusivo ao alcance da hipoteca constituída pela construtora em benefício do agente financeiro, como garantia do financiamento no empreendimento, precisamente se o gravame prevalece em relação aos adquirentes das unidades habitacionais.”

Ora, a multiplicidade de recursos sobre a matéria já é consabida, tanto quanto o entendimento jurisprudencial consolidado e sumulado pelo próprio Superior Tribunal de Justiça. Dessa feita, nos parece que não haveria sentido em afetar a matéria (e com isso sobrestar milhares de recursos espalhados pelos Tribunais Locais) se o entendimento, ao menos, do Relator do processo fosse ao encontro do entendimento vigente no Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria. Especula-se, portanto, que poderá advir desse processo representativo, orientação jurisprudencial que venha a restringir à propagada ineficácia da hipoteca no microssistema da incorporação imobiliária.

Em manifestação apresentada nos autos do processo representativo da controvérsia, a ABECIP – Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança -, na qualidade de entidade representativa do setor financeiro de crédito imobiliário, defendeu a inaplicabilidade do enunciado nº 308 do STJ nas hipóteses em que: i) a aquisição das unidades ou dos direitos a elas relativos tenha se dado por permuta firmada entre o antigo proprietário do imóvel em que se edifica o empreendimento e a incorporadora (uma vez que não se enquadrariam na categoria de adquirentes finais dos imóveis); ii) o registro da hipoteca tenha sido lançado na matrícula do imóvel objeto da incorporação antes da celebração da promessa de compra e venda (haja vista que neste caso o adquirente já teria presumível ciência do gravame hipotecário); e iii) as incorporações sejam realizadas sob o regime do patrimônio de afetação estabelecido pela Lei nº 10.931/2004, ou por Sociedade de Propósito Específico (alegadamente porque a garantia hipotecária visaria a garantia do próprio empreendimento em benefício dos próprios compradores…). Ressalva-se, por outro lado, que instada a se manifestar nos autos, não houve, até a presente data, a manifestação do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC, o qual por certo defenderá a manutenção da plena ineficácia da hipoteca, tal como hoje está assentada nos Tribunais.

A verdade é que a intenção das entidades financeiras não é simplesmente relativizar a aplicação do enunciado nº 308, mas sim fazer letra morta do entendimento pacificado pela Corte Superior. É de conhecimento geral que o contrato de financiamento firmado entre o incorporador e o agente financiador, por força do qual se dá em garantia o terreno no qual será edificado o empreendimento, serve para alavancar a sua construção, e, portanto, ocorre, em regra, antes das vendas das unidades. Aliás, se já vendidas as unidades do empreendimento e recebido o preço – até mesmo diante da possibilidade da securitização dos créditos e antecipação da carteira de recebíveis – não haveria maior sentido na assunção de financiamento  bancário para a construção. Nota-se, por oportuno, que o único negócio que costuma ocorrer antes da assunção do financiamento (e da constituição do gravame hipotecário) é o contrato de permuta com o proprietário do terreno, o qual giza-se, a prevalecer o entendimento dos agentes financiadores, também não mais seria merecedor de proteção especial.  E, ainda, se o caso concreto não se enquadrar em nenhuma dessas duas hipóteses (o que é raro), é provável que recaia ainda na hipótese de incorporação imobiliária realizada sob o regime do patrimônio de afetação, hipótese também aventada pelas entidades do sistema financeiro.

Espera-se que o Superior Tribunal de Justiça não agrida com tal ferocidade o entendimento por ele mesmo consagrado. Todavia, é possível – e penso justificável – que a matéria deva ser examinada à luz do caso concreto. Ao nosso sentir, deve ser observada não simplesmente a mera literalidade da redação do enunciado nº 308 do STJ, a qual simplesmente generaliza a ineficácia da hipoteca para toda e qualquer situação, mas sim a construção jurisprudencial que lhe deu origem, de cunho eminentemente social, e de proteção ao direito à moradia.

Frisa-se que não nos impressiona o argumento de que tal entendimento prejudicaria os financiamentos do País, haja vista que os mesmos são cada vez mais abundantes nos dias atuais, cabendo, aliás, aos agentes financiadores e aos incorporadores seguirem buscando formas de viabilizar seus negócios, sem que isso signifique a assunção de riscos para os terceiros adquirentes, os quais esperam pagar  e receber os seus imóveis livres de ônus.

Seja como for, o certo é que a reanálise da matéria em sede de recurso representativo pelo Superior Tribunal de Justiça deve servir de alerta para todos que participam do microssistema da incorporação imobiliária, sendo mais do que nunca aconselhável a adoção de cautela na realização de negócios nesse âmbito.

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