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A funcionalidade econômica e social do contrato de incorporação imobiliária

Por: Lourdes Helena Rocha dos Santos
03/09/2013

Sabidamente, a função primordial dos contratos em geral é a econômica, isto é, a de propiciar a circulação de riquezas. Segundo Judith Martins Costa, frase dita e repetida indica que o contrato é a veste jurídica das operações econômicas. (O DIREITO PRIVADO COMO UM SISTEMA EM CONSTRUÇÃO. “As cláusulas gerais no projeto do Código Civil brasileiro”. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado, 1998, n. 139, p. 7).

Sob o prisma econômico, a incorporação é o empreendimento que visa conseguir capital necessário para a construção do prédio, pela venda antecipada de unidades. (Maria Helena Diniz, em CURSO DE DIREITO CIVIL BRASILEIRO, pág. 686).

Inobstante a importância destacada à função econômica, esta deverá cumprir a sua função social, tão ou mais importante que o aspecto econômico do contrato.

Neste sentido, vale lembrar que a Lei dos Condomínios e Incorporações Imobiliárias (Lei 4.591/64) objetiva criar um ordenamento jurídico seguro para quem adquire unidades autônomas antes de sua conclusão, enfim, que os investimentos feitos pelos adquirentes resultem na conclusão da edificação e a entrega das unidades autônomas alienadas.

Ocorre que a incorporação imobiliária é uma operação econômica complexa que envolve um feixe de relações contratuais entre muitas partes: o incorporador, quem idealiza o negócio, congrega os adquirentes e com os mesmos celebra contratos de alienação das futuras unidades autônomas, reunindo os recursos financeiros necessários para a construção; o proprietário do terreno com quem o incorporador haverá de ajustar a aquisição do imóvel sobre o qual pretende edificar; os próprios adquirentes das unidades, que se obrigam a pagar as parcelas do preço do contrato de aquisição dos imóveis em contrapartida à promessa de entrega da unidade futura em construção (unidade autônoma); o projetista e/ou construtor, que pode bem ser o incorporador ou terceiro contratado, e, ainda, por vezes, o financiador (entidade financeira ou não) que aportará, mediante contrato de mútuo, recursos para o custeio da construção e o corretor que atua como intermediador na venda das futuras unidades.

Trata-se, pois, de uma pluralidade de contratos, na qual se identifica uma unidade de operações econômicas ou negócios propriamente ditos, os quais estão entrelaçados, perseguindo uma mesma prestação essencial, um todo contratual, para um mesmo e único negócio.

As relações contratuais entre os diversos partícipes do negócio da incorporação imobiliária não são estanques, distantes da realidade econômica e social que os vincula; daí exsurge o reconhecimento de um interesse comum ou coletivo, a ser protegido, acima dos interesses meramente individuais.

Melhim Namen Chalub, em artigo sobre incorporações na perspectiva do CDC, afirma que o contrato de incorporação celebrado entre o incorporador e o adquirente exprime, efetivamente, uma relação jurídica individual, mas o escopo do contrato extravasa o limite da individualidade de cada contratante; é que a função do negócio de incorporação é comum a todos os adquirentes e tem como objeto a totalidade da edificação, e não apenas as unidades imobiliárias que constituem o objeto de cada contrato, considerado isoladamente, daí resultando que o contrato de incorporação imobiliária é incindível; em consequência, a comunidade que os adquirentes e o incorporador formam para implementar a função do contrato atribui a esse conjunto de pessoas uma feição unitária, ligando-as por um vínculo semelhante à affectio societatis. (O CONTRATO DE INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA SOB A PERSPECTIVA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, Revista do Direito Imobiliário do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil – IRIB, São Paulo, n. 50, pág. 104).

Infelizmente, há casos em que ocorre o malogro do empreendimento, e, diante de tal situação, a função social do contrato de incorporação imobiliária estará ameaçada, necessitando grandes esforços dos partícipes do negócio para que o empreendimento seja reestruturado e se consiga alcançar o objetivo do término das unidades imobiliárias e a satisfação do interesse das partes envolvidas.

Neste contexto, sobrepor-se-á o interesse coletivo sobre os individuais posto que o término da construção em prol da coletividade dos condôminos é o bem maior a ser assegurado, a resguardar a funcionalidade do contrato de incorporação imobiliária.

Sem dúvida, embora os contratos de incorporação imobiliária sejam celebrados individualmente entre o incorporador e cada um dos adquirentes, há, do lado destes, uma comunhão de interesses, tanto que a Lei 4.591/64 atribui-lhes desde o início da execução do contrato representação coletiva, através da Comissão de Representantes e da Assembleia Geral dos contratantes.

Note-se que nos casos extremos de fracasso do incorporador, por atraso injustificado, paralisação de obras ou falência, a Lei 4.591/64 se voltará para a proteção coletiva dos adquirentes, a qual se materializa através de decisão assemblear, de destituir o incorporador e prosseguir no empreendimento, com ou sem novo incorporador, conforme previsão expressa no artigo 43, III e VI e 49, os quais autorizam em caso de mora ou falência do incorporador que a administração do empreendimento seja assumida pela Comissão de Representantes formada por adquirentes das unidades, cujas decisões, tomadas em Assembleia Geral, vincularão a minoria.

Esses órgãos de representação têm amplos poderes para, decidindo quanto à continuidade do empreendimento, outorgar escriturar e/ou contratos, promover rescisão e leilão dos contratos dos inadimplentes, entre outras funções que a lei lhes assegura.

Embora a Lei n° 4.591/64 (Lei do condomínio e incorporações) aponte um caminho a seguir nas hipóteses de paralisação das obras, dispondo que prevalecerá a decisão soberana da Assembleia Geral, expressa pela maioria dos contratantes, esta se omite ao não dispor formas de solução para os mais variados conflitos que poderão daí advir, sejam entre o incorporador faltoso e os adquirentes das unidades, entre os adquirentes das unidades e o proprietário do terreno ou entre os próprios adquirentes das unidades, os quais são muito comuns acontecer.

Tal omissão legislativa gera grande insegurança jurídica nos casos onde há desacertos entre as partes envolvidas, que muitas vezes descambam nos tribunais, cabendo, então ao julgador, a luz do princípio da função social do contrato de incorporação, dar ao caso concreto a solução reclamada.

Valiosas, neste contexto, as ponderações de Nelson Ferreira Pinto, na obra O CONTRATO IMOBILIÁRIO E A LEGISLAÇÃO TUTELAR DE CONSUMO (pág. 244), de que, como a funcionalidade econômica e social do contrato de incorporação deve ser considerada do ponto de vista da coletividade dos contratantes e não dos interesses meramente individuais de seus integrantes, daí decorre que o inadimplemento de uma parte ou o desfazimento unilateral por qualquer dos contratantes representa prejuízo para o empreendimento e para a comunidade, comprometendo a função social do contrato e a segurança jurídica.

Como a função social é cláusula geral inscrita no art. 421 do Código Civil Brasileiro, o juiz poderá preencher os claros do que significa esta função social, com valores jurídicos, sociais, econômicos e morais.

Recentes julgados do Superior Tribunal de Justiça vêm consagrando a funcionalidade do contrato de incorporação imobiliária e a proteção do interesse da coletividade dos condôminos, em conflitos havidos entre os partícipes da incorporação, nas hipóteses de retomada das obras pela Comissão de Representantes, após a falência do incorporador, a exemplo do RESP 1115605/RJ, do qual se extrai parte da ementa:

(…)1…(…)2. EMBORA O ART. 43, III, DA LEI Nº 4.591/64 NÃO ADMITA EXPRESSAMENTE EXCLUIR DO PATRIMÔNIO DA INCORPORADORA FALIDA E TRANSFERIR PARA COMISSÃO FORMADA POR ADQUIRENTES DE UNIDADES A PROPRIEDADE DO EMPREENDIMENTO, DE MANEIRA A VIABILIZAR A CONTINUIDADE DA OBRA, ESSE CAMINHO CONSTITUI A MELHOR MANEIRA DE ASSEGURAR A FUNCIONALIDADE ECONÔMICA E PRESERVAR A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO DE INCORPORAÇÃO, DO PONTO DE VISTA DA COLETIVIDADE DOS CONTRATANTES E NÃO DOS INTERESSES MERAMENTE INDIVIDUAIS DE SEUS INTEGRANTES. 3. (…). 4. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. (REL. MINISTRA NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, JULGADO EM 07/04/2011, DJE 18/04/2011).

Vale dizer que a missão de dar continuidade a empreendimentos inacabados constitui tarefa das mais árduas, para o que será imprescindível que as decisões judiciais dos conflitos daí emergentes levem em conta a essência dos interesses econômicos e sociais envolvidos no negócio da incorporação imobiliária.

E, na atividade incorporativa, dado o liame de relações que a mesma encerra, o contrato haverá de ser entendido não apenas como as pretensões individuais dos contratantes, mas, sim, como verdadeiro instrumento de convívio social entre os múltiplos participantes do negócio e de preservação dos interesses da coletividade em prol do término das obras.

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