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A "Lei dos Distratos" à luz do Sistema de Proteção da Incorporação Imobiliária. 

Por: Lourdes Helena Rocha dos Santos
17/12/2019

RESUMO


O presente artigo tem por objetivo fazer uma análise contextualizada da Lei nº 13.786/2018, mais conhecida como a Lei dos Distratos. Em um primeiro momento, mostra-se como a nova Lei reforça os princípios fundamentais da moderna teoria contratual ao materializar os princípios da boa-fé e do equilíbrio das relações contratuais. Destes princípios decorre um dever de conduta, consubstanciado na plena exibição dos dados e das informações essenciais do negócio, que deverão constar em um quadro resumo inicial. Depois disso, examina-se em que medida a nova Lei trouxe mecanismos que reforçam a irrevogabilidade e a irretratabilidade dos contratos celebrados entre o incorporador e os adquirentes. Por fim, estabelece-se uma hermenêutica sobre a intenção legislativa de preservação dos recursos necessários à consecução do empreendimento, especialmente a partir de uma análise sobre o novo regramento da cláusula penal, do prazo de devolução e do regime de afetação.

INTRODUÇÃO


Produto de uma intensa luta do setor imobiliário, entrou em vigor, no dia 27 de dezembro de 2018, a Lei nº 13.786, mais conhecida como a Lei dos Distratos. Acompanhada de duras críticas, especialmente por ser uma lei protetiva aos direitos dos incorporadores, a lei, sem dúvida, vem preencher importante lacuna legislativa no que tange às possibilidades de rompimento dos contratos de aquisição de imóveis no âmbito das incorporações imobiliárias. 


O cerne da questão é analisar e interpretar o conteúdo da nova lei de forma contextualizada com o sistema de proteção instituído pela Lei nº 4.591/64 – dos Condomínios e Incorporações Imobiliárias. Não se trata de examinar se a lei protege o incorporador em detrimento do adquirente, mas, sim, examinar se a lei se coaduna com todo o sistema de proteção do negócio da incorporação imobiliária. Coloco a questão nestes termos, pois não acredito que se possa proteger o adquirente ou o incorporador, sem proteger o negócio em si. Explico: Se o sistema de proteção falhar, nenhuma das partes restará atendida em seus anseios. 


Particularmente, entendo que a nova legislação veio preencher uma grave lacuna no sistema de proteção dos interesses de todos aqueles que participam do negócio da incorporação imobiliária, e não somente os interesses dos empreendedores. É falacioso pensar que a mera instituição do patrimônio de afetação possa trazer segurança aos adquirentes dos imóveis se justamente o patrimônio afetado, constituído precipuamente pelos recursos financeiros necessários para construir a obra, pode restar esvaziado durante a construção, para fazer frente às devoluções àqueles que compraram e a meio caminho desistiram. A considerar que são justamente os recursos provenientes das vendas das unidades que viabilizam ao incorporador construir e entregar os empreendimentos, há evidente necessidade de regular as hipóteses e as consequências advindas de eventuais resoluções dos contratos. 


Basta observar os problemas que a ausência de um regramento próprio e adequado ao negócio da incorporação estava a causar.  O incorporador, após ter lançado e vendido o empreendimento, contando com os valores a serem recebidos dos compradores para fazer frente aos compromissos assumidos para a construção, depara-se com ações judiciais visando o desfazimento dos contratos de compra e venda dos imóveis e com a interrupção do fluxo dos pagamentos. Aqueles imóveis que estavam vendidos, voltam ao seu estoque, sem previsão de nova venda. No entanto, as decisões judiciais lhe impõem a obrigação de devolver imediatamente as importâncias recebidas do comprador, deduzida a multa contratual pactuada, por muitas vezes minoradas pelos tribunais, ante a ausência de norma positiva e expressa acerca do percentual que pode ser retido à título indenizatório. 


O incorporador se vê então na difícil situação de não mais contar com os recursos que tinha para construir, embora tenha a obrigação de cumprir com as demais obrigações assumidas perante terceiros, especialmente o prazo de entrega da obra pactuado com todos os demais adquirentes. Neste contexto, muitas obras atrasam, muitos compromissos firmados com terceiros são descumpridos e muitos incorporadores são levados à quebra. Nada mais aterrador é ver que o imóvel sonhado não será entregue porque a construtora faliu ou ingressou com pedido de recuperação judicial, a qual, diga-se, não tem mostrado ser uma resposta para a solução de empreendimentos inacabados.


Os incorporadores, por meio das entidades de classe, foram à luta para expor a necessidade de uma legislação que atendesse os seus próprios anseios. Por outro lado, manifestaram-se os consumidores, especialmente clamando pela moderação na aplicação de multas nas hipóteses de resolução contratual motivada pelo não pagamento das parcelas do preço. Ante a promulgação da nova Lei dos Distratos, cabe-nos, então, à luz do sistema de proteção da incorporação imobiliária, analisá-la criticamente, a partir de seus principais fundamentos.


1. A MATERIALIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA BOA-FÉ E DO EQUILÍBRIO DAS RELAÇÕES CONTRATUAIS E O SUBJACENTE DEVER DE CONDUTA. 


De pronto, chama atenção que a Lei nº 13.786, inicie instituindo a obrigatoriedade de que “os contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas integrantes de incorporação imobiliária serão iniciados por quadro-resumo, que deverá conter: ...” (artigo 35-A acrescido à Lei nº 4.591/64 pelo Art. 2º da nova Lei dos Distratos).


A pergunta que se impõe é qual teria sido a intenção do legislador, de iniciar uma lei cujo objetivo é disciplinar a resolução de contratos no âmbito das incorporações imobiliárias, obrigando que o instrumento contratual tenha uma forma estrita (o quadro resumo antecedente), e do qual deva constar um rol categórico de certas e determinadas informações, sem as quais estará caracterizada a “justa causa para a rescisão do contrato por parte do adquirente” (§1º do artigo 35-A acrescido à Lei nº 4.591/64 pelo Art. 2º da nova Lei dos Distratos).  Qual a razão para tamanho grau de intervenção legislativa nos contratos de incorporação imobiliária?.


Conforme os ensinamentos de Melhim Namem Chalhub, a intervenção legislativa em determinadas espécies de contratos, justifica-se pela sua densidade social, na medida em que “requerem a atuação da norma jurídica para compensar eventual situação de desvantagem contratual e para garantir a segurança jurídica em favor do mais fraco...”. (1) De fato, tornou-se comum observar situações em que os adquirentes estavam em franca desvantagem contratual. 


Não há como não reconhecer o desequilíbrio que decorre de certas práticas, em especial as que submetem os adquirentes a contratos de aquisições de imóveis pré-redigidos, de difícil leitura e compreensão, recheados de cláusulas surpresa, as quais aparentam um sentido equitativo quando do primeiro contato, mas que ao longo do texto contratual provocam efeitos contrários ao que se supôs. Tampouco é incomum encontrarmos declarações inseridas nos compromissos de compra e venda, dizendo que o adquirente leu e compreendeu o sentido e o alcance do contrato, e assim por adiante.  Aliás, tais dizeres são absolutamente irrelevantes e não obrigam o adquirente quando não foi lhe dado objetivamente a condição de ter compreendido. Na opinião de Paulo Luiz Neto Lôbo, a qual comungo, o que importa é ter podido o adquirente conhecer e ter podido compreender “a saber, se houve efetiva possibilidade e os meios para tal foram postos à sua disposição, não só a ele mas a qualquer outro consumidor.” (2) O fato é que este modo de proceder se mostra extremamente prejudicial ao sistema de proteção da incorporação imobiliária, sendo que a nova lei se volta justamente contra esta prática, verdadeiramente impondo um novo modelo de contrato. 


A partir da vigência da Lei dos Distratos, os contratos de aquisição de imóveis  passam obrigatoriamente a serem precedidos por um quadro resumo antecedente, o qual deverá conter um rol de informações, que são: o preço e sua forma de pagamento; os encargos (correção monetária e juros)  incidentes; comissão de corretagem porventura devida; eventuais ônus que recaiam sobre o imóvel, inclusive hipoteca para financiamento da construção; dados da incorporação; a faculdade de arrependimento por 07 dias para os contratos firmados em estande de vendas e fora da sede da incorporadora; e o termo final para conclusão das obras. 


Ainda, de forma especial, passa a nova lei a impor, como fator de eficácia às cláusulas limitativas de direito do consumidor, que conste do quadro-resumo, com destaque negritado, as penalidades aplicáveis e os prazos de devolução das quantias pagas nas hipóteses do  “desfazimento do contrato, seja por meio de distrato, seja por meio de resolução contratual motivada por inadimplemento contratual  de obrigação do adquirente ou do incorporador” (inciso VI do artigo 35-A acrescido à Lei nº 4.591/64 pelo Art. 2º da nova Lei dos Distratos).


Além disso, no §2º do artigo 35-A acrescido à Lei nº 4.591/64 pelo Art. 2º da nova Lei dos Distratos, está disposto que a efetivação das consequências do desfazimento do contrato “dependerá de anuência prévia e específica do adquirente a seu respeito, mediante assinatura junto a essas cláusulas, que deverão ser redigidas conforme o disposto no §4º do art. 54 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor)”.


Como bem observa Nelson Nery Junior, o fornecedor, neste caso o incorporador imobiliário, “deverá chamar a atenção do consumidor para as estipulações desvantajosas para ele, em nome da boa-fé que deve presidir as relações de consumo”. (3) Ora, tratando-se a cláusula de perdimento parcial das importâncias pagas, tal qual foi batizada na doutrina e jurisprudência, de índole gravosa aos direitos dos consumidores, a intenção do legislador, sem dúvida, foi assegurar que o adquirente tome ciência prévia e inequívoca da mesma antes de firmar definitivamente o contrato. Nos dizeres de Antônio Herman V. Beijamin (4), não basta o fornecedor informar o consumidor no momento contratual, pois a informação contratual corre risco de “chegar tarde demais, ou então, não ser captada”.


A nova Lei dos Distratos veio transpor para a incorporação imobiliária os princípios fundamentais da moderna teoria contratual, materializados nos princípios da boa-fé e do equilíbrio das relações contratuais, dos quais decorre um dever de conduta, que deve ser observada tanto na formação quanto na execução do contrato, mediante a plena exibição dos dados e das informações, bem como mediante a elaboração de instrumentos contratuais em termos claros, acessíveis e facilmente inteligíveis.

Portanto, busca o legislador uma tomada de decisão informada, consciente e refletida por parte do adquirente ao firmar o contrato de aquisição de unidade imobiliária em construção, especialmente no que tange às consequências que a este advirão, caso se torne inadimplente quanto ao cumprimento das cláusulas do contrato. O grau de importância e transparência que a Lei dos Distratos emprega ao ato de contratar, é o que, ao meu ver, dá suporte ético à incidência da cláusula de retenção parcial das importâncias pagas, nas hipóteses de resolução contratual em decorrência do inadimplemento do preço, a qual pode significar a perda de até 25% (vinte e cinco por cento), e nos casos em que a incorporação esteja submetida ao regime do patrimônio de afetação, em uma perda de até 50% (cinquenta por cento). 

Dessa forma, partindo-se do pressuposto de que a assinatura do contrato de aquisição da unidade imobiliária passa pela tomada de uma decisão suficientemente informada, com cláusulas claras, precisas e inteligíveis quanto ao seu conteúdo e consequências, é de se esperar que tais contratos sejam respeitados, especialmente no que tange à sua irrevogabilidade e irretratabilidade.


2. O REFORÇO À IRREVOGABILIDADE E IRRETRATABILIDADE DOS CONTRATOS 


A certeza originada do contrato firmado entre o incorporador e o adquirente é questão central no âmbito da incorporação imobiliária. Certeza para ambas as partes. 

Como costuma acontecer, o adquirente, antes de comprar, visitou vários imóveis, comparou preços e condições de pagamento. Muitas vezes, aplicou todos os valores de sua poupança e mais um pouco! Ali empenhou grande parte do seu projeto de vida.

 

Por esta razão, a Lei nº 4.591/64 confere ao contrato, inclusive ao ajuste preliminar (5), caráter obrigatório, de direito real oponível a terceiros, com o consequente direito à obtenção compulsória do imóvel (6).  Sendo assim, mesmo que não mais lhe convenha ou não tenha vendido todas as unidades do empreendimento, não assiste ao incorporador o direito de desistir da avença. Tanto é que a Lei nº 4.591/64 dispõe que caberá ao incorporador custear as unidades “que não tenham tido a responsabilidade de sua construção assumida por terceiros e até que o tenham”. (7)


Com isso, a lei visa proteger o adquirente do oportunismo de empreendedores mal-intencionados que objetivem angariar recursos oriundos da economia popular e, ao seu bel prazer, caso o negócio não mais lhe convenha, simplesmente arrepender-se e desistir do negócio. Por essa razão, não há no microssistema da incorporação imobiliária previsão legal a conferir ao incorporador o direito a desistir unilateralmente do negócio, exceto no curto período do prazo de carência previsto na Lei nº 4.591/64. De fato, o artigo 34 da Lei confere ao incorporador a possibilidade de fixar prazo de carência, o qual não poderá ultrapassar 180 (cento e oitenta) dias contados do lançamento do empreendimento, para desistir do negócio e devolver aos adquirentes as importâncias recebidas. 

Este prazo é justamente o necessário para o incorporador testar o produto e sua aceitação no mercado. Se não vendeu um percentual que lhe demonstre que o negócio prosperará, pode ele simplesmente desistir sem quaisquer penalidades, desde que tenha ressalvado no contrato tal possibilidade.


Nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira “o incorporador é vinculado ao negócio e obrigado a promovê-lo” e não denunciada a incorporação no prazo de carência “apura-se a definitiva vinculação do incorporador, que não pode mais fugir às consequências da falta de concretização do negócio”. (8)


Caso seja ultrapassado o prazo de carência, é vedado ao incorporador desistir do negócio. Se este vendeu abaixo do preço e o imóvel valorizou, se não conseguiu vender todas as unidades, enfim, terá o incorporador o dever contratual de prosseguir e terminar o empreendimento, sob as penas da lei, inclusive sujeito a sua eventual destituição da condição de incorporador se assim não o fizer. (9)


A nova Lei dos Distratos, ao tratar das hipóteses de desfazimento dos contratos, também não reconhece direito de arrependimento ou resilição ao incorporador. Pelo contrário. Observa-se das disposições contidas no artigo 43-A acrescido à Lei nº 4.591/64 pelo art. 2º da nova Lei dos Distratos, que: “Se a entrega do imóvel ultrapassar o prazo estabelecido no caput deste artigo, desde que o adquirente não tenha dado causa ao atraso, poderá ser promovida por este a resolução do contrato, sem prejuízo da devolução de todos os valores pagos e da multa estabelecida,...”. Ou seja, em caso de atraso do incorporador na entrega do imóvel, a lei faculta tão somente ao adquirente postular a resolução do contrato. Não há qualquer disposição legal que possibilite ao incorporador se desincumbir da avença, caso o comprador queira aguardar o cumprimento, hipótese em que deverá pagar indenização pelo atraso (§2º do artigo 43-A acrescido à Lei nº 4.591/64 pelo art. 2º da nova Lei dos Distratos).


No mesmo sentido, o disposto no art. 67-A, acrescido à Lei nº 4.591/64 pelo art. 2º da nova Lei dos Distratos, vejamos: “ Em caso de desfazimento do contrato celebrado exclusivamente pelo incorporador, mediante distrato ou resolução por inadimplemento absoluto de obrigação do adquirente, este fará jus à restituição das quantias que houver pago...” Ou seja, resta explícito que o desfazimento do contrato poderá ocorrer por meio de instrumento bilateral (ou distrato) ou em razão do inadimplemento absoluto do adquirente. Fora destas hipóteses – imperativo ao incorporador o cumprimento do contrato, ante sua irrevogabilidade e irretratabilidade.


Este mesmo caráter coercitivo recai ao adquirente de imóveis no âmbito da incorporação imobiliária. Como bem descreve e caracteriza Melhim Namem Chalhub, o contrato de incorporação imobiliária “contempla elementos de natureza obrigacional e de natureza real; o primeiro é o objeto imediato do contrato, isto é, a obrigação de fazer e de dar, ou seja, de uma parte,  a obrigação do incorporador de promover a construção, por si ou por terceiros, e de entregar as unidades aos adquirentes, transmitindo-lhes a propriedade, e, de outra parte, a obrigação destes últimos de comprar e pagar o respectivo preço.” (10) Com efeito, a irrevogabilidade e a irretratabilidade dos contratos celebrados entre o incorporador e os adquirentes é a base de sustentação da incorporação imobiliária, pois esta desenvolve-se com os aportes dos adquirentes, assim entendidas as parcelas do preço contratadas. Ademais a realização da função econômica e social do contrato de incorporação imobiliária, mesmo vista sob a perspectiva de um só adquirente, só se torna possível com a participação pecuniária da totalidade dos adquirentes.


Observe-se que para a realização do empreendimento imobiliário o incorporador investiu na aquisição do terreno e na aprovação do projeto, realizou despesas cartorárias e comerciais, enfim, responsabilizou-se por inúmeras despesas.  Ao celebrar os compromissos de compra e venda das unidades imobiliárias com os adquirentes, o incorporador negociou preço e condições, e tendo sido firmados os respectivos contratos, passou a contar com o fluxo dos pagamentos contratados. A partir deste fluxo gerado, comprou o incorporador os materiais da construção, contratou mão-de-obra, assumiu compromissos com instituições financeiras, inclusive, como sói acontecer, hipotecou o terreno e acessões bem como cedeu os recebíveis dos contratos ao banco que financiou a construção. Ora, para a garantia do sistema de proteção das incorporações imobiliárias, a mesma certeza de irrevogabilidade que recai sobre o incorporador, deve recair sobre o adquirente, ao qual não é dado o direito de arrependimento.


Não obstante, nos últimos anos, proliferaram decisões judiciais que terminaram por fragilizar o caráter de irrevogabilidade e irretratabilidade dos contratos, o qual é fundamental para todo o sistema de proteção da incorporação imobiliária. Sem dúvida, a Lei dos Distratos, ora em vigor, também resulta do clamor dos bons empreendedores que viram derreter suas carteiras imobiliárias por decisões judiciais que relativizaram, de forma despropositada, o caráter de irrevogabilidade dos contratos, conferindo ao adquirente um quase “direito potestativo” de arrependimento, não previsto em lei e que coloca em risco todo o sistema de proteção desta especial modalidade de negócio jurídico.


Sabe-se que há situações extremas que precisam ser tuteladas, mas devem estar “delimitadas e condicionadas a fatores excepcionais hábeis a justificar aquele inadimplemento, a serem devidamente comprovados no caso concreto” (11), como por exemplo as hipóteses comprovadas de perda do emprego por aquele que não possui outra fonte de renda, doenças graves, enfim situações excepcionais  que impeçam o adquirente de cumprir com o contrato.


De forma adequada, a única previsão contida na nova Lei dos Distratos conferindo direito de arrependimento ao comprador, está contida no §10º do Art. 67-A acrescido à Lei nº 4.591/64 “para os contratos firmados em estandes de vendas e fora da sede do incorporador”.


O legislador, atento para as vendas que ocorrem, por exemplo, em feirões, estandes de vendas em shopping centers, enfim situações que possam provocar uma compra não suficientemente refletida por parte do adquirente, conferiu-lhe o prazo improrrogável de 07 dias para manifestar sua eventual desistência. Transcorrido este prazo “sem que tenha sido exercido o direito de arrependimento, será observada a irretratabilidade e irrevogabilidade do contrato de incorporação imobiliária, conforme o disposto no §2º do art. 32 da Lei nº 4.591/64 de 16 de dezembro de 1964” (§12º do art. 67-A acrescido à Lei nº 4.591/64 pela nova Lei dos Distratos). Ao reafirmar o dispositivo contido no §2º do art. 32 da Lei nº 4.591/64, não deixa dúvida o legislador sobre sua intenção de reforçar a irrevogabilidade e irretratabilidade dos contratos no âmbito das incorporações imobiliárias.


Visto sob ponto de vista do equilíbrio do contrato, o caráter de irrevogabilidade e irretratabilidade dos compromissos permite, em tese, que o adquirente exija o cumprimento das obrigações do incorporador, inclusive e especialmente a entrega da sua unidade no prazo e termos contratados e o incorporador exija do adquirente o cumprimento do contrato, em especial o pagamento do preço ao qual se obrigou. 

O propósito da norma legal de irrevogabilidade e irretratabilidade do contrato no âmbito das incorporações é conferir ao negócio a segurança jurídica e econômica necessárias ao cumprimento da função social deste especial tipo de contrato, na medida em que visa manter o ritmo do programa contratual e, em consequência, a conclusão da obra no prazo pactuado. Para que a obra não perca seu ritmo e o cronograma de término seja cumprido, o incorporador deverá contar com os recursos postos à disposição, oriundos dos contratos celebrados com os adquirentes, os quais viabilizarão a consecução do empreendimento. 


3. A INTENÇÃO DE PRESERVAÇÃO DOS RECURSOS NECESSÁRIOS À CONSECUÇÃO DO EMPREENDIMENTO


Fica absolutamente claro pelo teor da nova Lei dos Distratos a preocupação do legislador em preservar os recursos necessários ao término do empreendimento, os quais são advindos precipuamente dos contratos de promessa de compra e venda firmados com os adquirentes. Isto porque a possibilidade de esvaziamento dos recursos oriundos das vendas, em decorrência das resoluções de contratos, coloca em risco todo o sistema de proteção da incorporação imobiliária. A intenção de preservação dos recursos necessários para concluir o empreendimento mostra-se presente na nova Lei dos Distratos de forma absolutamente contundente. Ao estabelecer, de modo objetivo, que a resolução do contrato por força do inadimplemento sujeitará o adquirente à multa indenizatória, o legislador deixa claro a sua preocupação em preservar estes recursos. A principal função da cláusula penal é o reforço do vínculo contratual. Impondo uma sanção ao adquirente que venha a descumprir o contrato, a Lei nº 13.786 busca justamente reprimir o inadimplemento da avença. Não por outra razão, Daniel Ustárroz, citando Caio Mário da Silva Pereira, preleciona assertivamente que “a finalidade essencial da pena convencional, a nosso ver, é o reforçamento do vínculo obrigacional”. (12) 


Nos termos do inciso II do Art. 67-A, introduzido à Lei nº 4.591/64 pela nova Lei dos Distratos, a pena convencional ao adquirente inadimplente “que não poderá exceder a 25% (vinte e cinco por cento) da quantia paga” indica claramente o peso que está a se dar às situações que colocam em risco a preservação do fluxo de pagamentos originados dos contratos firmados. Em se tratando de incorporação submetida ao regime do patrimônio de afetação, hipótese na qual “a incorporação se desenvolve com as suas próprias forças” (13), admite-se que a pena convencional “seja estabelecida até o limite de 50% (cinquenta por cento) da quantia paga” (§5º do art. 67-A acrescido à Lei nº 4.591/64 pela nova Lei dos Distratos). Além de a cláusula penal reforçar o vínculo contratual, ao estipular a incidência de pena convencional ante a configuração do inadimplemento absoluto do adquirente, os prejuízos causados restarão, em tese, cobertos, preservando-se assim os recursos necessários ao término da obra. A questão é que não haja desfalque que possa comprometer o bom andamento da obra.


Outra questão fundamental é o prazo para a devolução das importâncias pagas pelo adquirente que por força do seu inadimplemento tiver o contrato resolvido. A nova Lei dos Distratos inova, contrariando inclusive jurisprudência sumulada no STJ (14), a qual determinava até então que a restituição ao adquirente, nas hipóteses de resolução contratual, deve ser imediata. Nos termos do §6º do inciso II do Art. 67-A, introduzido à Lei nº 4.591/64, o ressarcimento das quantias pagas ao adquirente inadimplente, após as deduções, se remanescente houver, será realizado “em parcela única, após o prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado da data do desfazimento do contrato”. Em se tratando de incorporação submetida ao regime do patrimônio de afetação, a devolução só irá ocorrer após a finalização das obras “no prazo máximo de 30 (trinta) dias após o habite-se ou documento equivalente expedido pelo órgão público municipal competente” (§5º do Art. 67-A acrescido à Lei nº 4.591/64 pela nova Lei dos Distratos).


Além dos temas da cláusula penal e do prazo de devolução, há um terceiro aspecto que exsurge da hermenêutica da Lei dos Distratos, aparentemente paradoxal. É possível que ocorra o agravamento das consequências da resolução ao adquirente quando o mesmo tiver adquirido unidade imobiliária cuja incorporação esteja sujeita ao regime do patrimônio de afetação. Ora, qual a razão de privar os adquirentes no âmbito das incorporações com patrimônio afetado dos valores pagos aos quais tem direito de ressarcimento, postergando a restituição para até 30 dias da finalização das obras? A questão causa perplexidade se considerarmos que o regime do patrimônio de afetação adveio justamente da necessidade de oferecer proteção aos adquirentes de imóveis em incorporações imobiliárias.


O argumento que ao meu ver justifica tamanho agravamento das consequências advindas do inadimplemento no âmbito da incorporação afetada, é a ênfase que se pretende dar à segurança jurídica para o conjunto de seus integrantes. A obra terminará, mesmo que ocorram situações de resolução ou distratos, na medida em que as restituições somente ocorrerão após o término do empreendimento. 

Trata-se, sem dúvida, da preponderância do interesse coletivo sobre o individual, optando claramente o legislador em dar mais segurança àqueles que optaram em comprar as unidades e adimpliram seus contratos mas que por outro lado, implica em uma maior rigidez em relação àqueles que a meio caminho desistiram, os quais só receberão os valores que aportaram para a obra, depois de expedido o habite-se, e ainda, sujeito a uma perda que pode chegar até a metade das importâncias pagas.

Com efeito, a devolução dos valores pagos em meio à construção pode até atender o interesse individual de um adquirente, mas poderá colocar em risco a realização da função social do contrato, que para atender a comunidade dos adquirentes, na sua totalidade, reclama a manutenção do fluxo financeiro que fornece os recursos para a construção.


CONSIDERAÇÕES FINAIS 


À luz dos seus principais fundamentos, entendo que a nova Lei dos Distratos fortalecerá o sistema de proteção da incorporação imobiliária, trazendo novos e importantes dispositivos legais necessários para a segurança jurídica do negócio de compra e venda de imóveis na planta. Participei de muitos eventos nos quais ouvi os incorporadores postularem por um sistema que trouxesse mais garantias ao ato de empreender e que os contratos celebrados fossem respeitados. Totalmente compreensível. 

Por outro lado, também entendo que, juntamente com normas jurídicas claras e suficientes às hipóteses de resolução contratual ou distratos, deva coexistir um modelo de comportamento contratual, que se traduz num dever de conduta apropriado à grandeza do contrato em questão, que não é qualquer contrato.  Tal dever de conduta, a ser observado tanto na formação quanto na execução do contrato, deve refletir os princípios da boa-fé e do equilíbrio nas relações contratuais, ínsitos aos contratos de incorporação imobiliária.

Ao meu ver, este é o espírito da nova lei e que deve servir de base à sua interpretação. Enfim, estamos tratando da compra e venda de um imóvel, o qual não é uma operação corriqueira, tanto pelos valores envolvidos como pelo que representa na vida da grande maioria dos brasileiros. 


(1) CHALHUB, Melhim Namen. “O contrato de incorporação imobiliária sob a perspectiva do Código de Defesa do Consumidor”. Revista de direito imobiliário, nº 50, jan./jun. 2001, p. 101.

(2) LÔBO, Paulo Luiz Neto. “Contratos no Código do Consumidor: Pressupostos gerais”. Justitia, n° 54, out./dez. 1992, p. 133.

(3) NERY JUNIOR, Nelson et. al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, Vol. I. (Direito Material), p. 655.

(4) BENJAMIN, Antonio Hermann V. “O controle jurídico da publicidade”. Revista do Direito do Consumidor, nº 9, jan./mar. 1994, p. 45 e p. 46.

(5) §4º do art. 34 da Lei nº 4.591/64: “Descumprido pelo incorporador e pelo mandante de que trata o §1º do artigo  31 a obrigação da outorga dos contratos referidos no caput deste artigo, nos prazos ora fixados, a carta-proposta ou o documento de ajuste preliminar poderão ser averbados no Registro de Imóveis, averbação que conferirá direito real oponível a terceiros, com o consequente direito à obtenção compulsória do contrato correspondente.” §2º do art. 32 da Lei nº 4.591/64: “ Os contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas são irretratáveis e, uma vez registrados, conferem direito real oponível a terceiros, atribuindo direito a adjudicação compulsória perante o incorporador ou a quem o suceder, inclusive na hipótese de insolvência posterior ao término da obra.”

(6) §2º do art. 32 da Lei nº 4.591/64: “ Os contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas são irretratáveis e, uma vez registrados, conferem direito real oponível a terceiros, atribuindo direito a adjudicação compulsória perante o incorporador ou a quem o suceder, inclusive na hipótese de insolvência posterior ao término da obra.”

(7) §6º do art. 34 da Lei nº 4.591/64:  “Ressalvado o disposto no artigo 43, do contrato de construção deverá constar expressamente a menção dos responsáveis pelo pagamento da construção de cada uma das unidades. O incorporador responde, em igualdade de condições, com os demais contratantes, pelo pagamento da construção das unidades que não tenham tido a responsabilidade da construção assumida por terceiros até que o tenham.” 

(8) PEREIRA, Caio Mário Silva. Condomínio e Incorporações. 10ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 268.

(9) Art. 43, inciso VI, da Lei nº 4.591/64: “VI - Se o incorporador, sem justa causa devidamente comprovada, paralisar as obras por mais de 30 dias, ou retardar-lhes excessivamente o andamento, poderá o juiz notificá-lo para que no prazo de 30 dias as reinicie ou torne a dar-lhes andamento normal. Desatendida a notificação, poderá o incorporador ser destituído pela maioria absoluta dos votos dos adquirentes, sem prejuízo da responsabilidade civil ou penal que couber, sujeito à cobrança executiva das importâncias comprovadamente devidas, facultando-se os interessados prosseguir na obra.”

(10) CHALHUB, Melhim Namen. “O contrato de incorporação imobiliária sob a perspectiva do Código de Defesa do Consumidor”, op. cit., p. 102.

(11) SILVEIRO, Roberto Santos; OLIVEIRA, Maria Angélica Jobim de. “Os distratos e a necessidade de preservação do direito social e coletivo no âmbito das incorporações imobiliárias”. Temas Atuais de Direito Imobiliário – 2018. Porto Alegre: SSA, 2018, p. 55.

(12) PEREIRA, Caio Mário da Silva apud USTARRÓZ, Daniel. Contratos em Espécie. São Paulo: Atlas, 2015, p. 22.

(13) CHALHUB, Melhim Namen. Alienação Fiduciária, Incorporação Imobiliária e Mercado de Capitais – Estudos e Pareces. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 259.

(14) Súmula 543 - Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento. (Súmula 543, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 26/08/2015, DJe 31/08/2015).

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