Voltar ao topo da página

Artigos

Artigo

Novas Perspectivas para a Regularização Fundiária Urbana - Reurb

Por: Ciane Braz Franco
13/03/2020

RESUMO


O artigo versa sobre as principais transformações advindas com a nova Lei da Regularização Fundiária Urbana – Reurb. Pretende-se avaliar como a novel legislação, por meio de seus institutos jurídicos, será capaz de modernizar os procedimentos de modo a promover e incentivar a regularização fundiária urbana, com a utilização de seus importantes instrumentos, especialmente a demarcação urbanística, a Certidão de Regularização Fundiária (CRF), a legitimação da posse e a legitimação fundiária. Em seguida, serão diferenciadas as modalidades da Reurb-E (Regularização Fundiária de Interesse Específico) e da Reurb-S (Regularização Fundiária de Interesse Social). Será ainda desenvolvida uma análise do procedimento da Regularização Fundiária Urbana, com a apresentação de um fluxograma de todo o seu trâmite, bem como será realizada uma intepretação sobre os objetivos da Lei.


INTRODUÇÃO


De evidente constatação, a questão fundiária é um dos problemas mais relevantes no Brasil, com dimensões históricas e sociais profundas. Recentemente, a aprovação da nova Lei da Regularização Fundiária Urbana – Reurb, Lei nº 13.465/17 acena para uma possível transformação do amplo cenário de construções irregulares no país. 

O artigo versa sobre as principais transformações promovidas pela Lei da Regularização Fundiária Urbana – Reurb, Lei nº 13.465/17, a qual disponibiliza instrumentos que flexibilizam e simplificam as normas para regularização de imóveis, de modo a facilitar sua colocação na realidade formal.  

Pretende-se avaliar como a novel legislação, por meio de seus institutos jurídicos, será capaz de modernizar os procedimentos de modo a promover e incentivar a regularização fundiária urbana, com a utilização de seus importantes instrumentos, especialmente a demarcação urbanística, a Certidão de Regularização Fundiária (CRF), a legitimação da posse e a legitimação fundiária. 

Em seguida, serão diferenciadas as modalidades da Reurb-E (Regularização Fundiária de Interesse Específico) e da Reurb-S (Regularização Fundiária de Interesse Social). Será ainda desenvolvida uma análise do procedimento da Regularização Fundiária Urbana, com a apresentação de um fluxograma de todo o seu trâmite, bem como será realizada uma intepretação sobre os objetivos da Lei.


1. A MODERNIZAÇÃO DO REGIME DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA


Os problemas envolvendo a questão fundiária no Brasil são tão antigos e tão nevrálgicos que chegam a se confundir com a própria história do país, desde o tempo da colonização portuguesa, passando pelo Império e pela República. O estudo desse fenômeno de maneira adequada exige a adoção de uma metodologia histórico-evolutiva dos diplomas legais, que conduza a um entendimento da relação entre as transformações sociais e as regulações jurídicas que ocorreram ao longo da história brasileira. Esse gênero de investigação pode ser encontrado em estudos específicos sobre o tema. (1) Para o contexto de nossa exposição, importa sinalizar é a permanência de inúmeras lacunas, mesmo depois de marcos históricos, como a extinção das sesmarias em 1822, a edição da Lei de Terras (Lei nº 601/1850) e o Código Civil de 1916, além da aprovação de múltiplas regras específicas para o tratamento da questão fundiária e urbana em nosso país.

Por muitos anos o país teve que conviver num contexto de irregularidades e falta de normas claras e objetivas no tocante às questões fundiárias. Diante da necessidade de estabelecer regramento rígido para a implantação de novos parcelamentos, na tentativa de dificultar a expansão de loteamentos irregulares e de outras formas de ocupação das terras sem observância da legislação pertinente, foi publicada, em 1979, a Lei do Parcelamento do Solo, Lei nº 6.766/79, que, olhando somente para o futuro, ignorou o passado de irregularidades fundiárias do país, esquecendo-se dos núcleos populacionais consolidados, que alastraram-se nas periferias das grandes cidades ante a premência do ter onde morar dos menos favorecidos.

Ao estabelecer requisitos rígidos para novos parcelamentos, e não indicando solução para resolver o problema dos inúmeros assentamentos irregulares já existentes, a situação se tornava cada vez mais fora de controle, pois a população só aumentava e os núcleos irregulares sobrepunham-se em áreas de preservação permanente, mananciais, áreas de risco e quaisquer terras que estivessem desocupadas.

Em 2009, com a edição da Lei nº 11.977, do Programa Minha Casa Minha Vida, iniciou-se a regularização da propriedade dos assentamentos urbanos, porém, ainda apresentou algumas falhas e omissões que dificultavam a concessão do título de propriedade aos residentes nesses núcleos, persistindo o antigo tema da irregularidade.

Diante do cenário que se apresentava e com o problema persistindo na maioria dos Estados brasileiros sem perspectiva de solução, em 22 de dezembro de 2016 foi publicada a Medida Provisória nº 759/2016, que mudou a sistemática da regularização fundiária rural e urbana, oferecendo novos instrumentos e aperfeiçoando os já disponíveis, com o intuito de afastar os inúmeros fatores que dificultam ou mesmo impedem a realização efetiva da regularização fundiária. Com a conversão da Medida Provisória nº 759/2016 na Lei nº 13.465/2017 (Lei de Regularização Fundiária Urbana – Reurb), houve uma modernização no regime de regularização fundiária no país, objetivando a implantação de amplo programa com essa finalidade.

Para que uma área seja objeto de processo de regularização pelos critérios da Reurb, conforme disposto em seu art. 11, II, deve estar presente no núcleo habitacional o requisito da irregularidade. As medidas disponíveis na lei para a regularização fundiária urbana preconizam um abrandamento das exigências referentes aos requisitos para registro de núcleos informais, de maneira que possam ser incorporados ao ordenamento formal e territorial urbano, com a concessão de titulação individual a seus ocupantes e isso significa, principalmente, a inclusão social desses indivíduos e famílias beneficiadas por esses institutos.

A titulação que será conferida individualmente aos ocupantes do núcleo regularizado será capaz de valorizar o imóvel, proporcionando condições de movimentar o mercado imobiliário, facilitando o acesso ao crédito porque, a cada proprietário de unidade ou casal de proprietários, será conferida matrícula própria, dando-lhes condições de negociar o imóvel, adquirir outro, enfim, praticar os atos que entenderem de seu interesse em relação ao bem, exercendo sua condição de proprietário registral.

A nova forma de regularização criada pela lei, denominada “legitimação fundiária” abreviou o processo tradicional de comprovação de posse e aquisições mediante sucessivas cessões, para dar lugar a um reconhecimento por aquisição originária de propriedade a partir de cadastro aprovado pelo Poder Público. Caberá assim aos Municípios, o reconhecimento, mediante estudos, levantamentos e análise das ocupações, para classificá-las como núcleos urbanos consolidados de forma irreversível, quer localizados em áreas públicas ou particulares, com ou sem registro imobiliário, sejam localizadas em áreas urbanas ou rurais.

Com os mesmos critérios serão reconhecidos os imóveis destinados a atividades profissionais ou comerciais, tais como terrenos onde foram edificados prédios simples onde funcionam minimercados, padarias, oficinas mecânicas, marcenarias, dentre outros.

As situações clandestinas dos núcleos urbanos são fatos consolidados à espera de atos da administração pública que lhes tragam para o universo da regularidade que representa a inscrição dos imóveis desses núcleos no sistema registral e nos cadastros municipais. Para João Pedro Lamana Paiva, “Regularização Fundiária compreende o entendimento de se alcançar o mundo jurídico formal nas operações imobiliárias. Num primeiro momento, tem um viés de agir conforme o ordenamento prevê (regularizações comuns). Noutro, de tentar readequar o fato à norma, quando ele se consolidou em infração à ela, visando outorgar título a quem está ou esteve, voluntária ou involuntariamente, na clandestinidade, de modo a que os ocupantes alcancem a plena dignidade humana”. (2) Trata-se de afirmação pertinente a resumir o espírito da Lei, principalmente no aspecto de se buscar sempre, em primeiro lugar, a forma já regulamentada para ajustar os fatos à norma, porém, quando o fato consolidado existe e não pode ser adequado a norma vigente à época do acontecimento, na medida do possível este deve ser acolhido, independentemente de ele ter ou não observado o que a Lei determinava.


2. OS PRINCIPAIS INSTITUTOS REGULATÓRIOS DA REURB


A nova Lei define aspectos, normas gerais e procedimentos aplicáveis à Regularização Fundiária Urbana, indicando medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano. Os institutos disponibilizados pela Lei poderão ser utilizados como verdadeiras ferramentas para a materialização dos trâmites legais, que irão culminar na regularização da ocupação das áreas e na concessão dos títulos de propriedade ou, conforme o caso, com o reconhecimento da posse para futura concessão do documento de propriedade. Trata-se de dispositivos que visam contribuir para o ordenamento das cidades, reconhecendo direito à moradia para cidadãos que estão estabelecidos irregularmente em suas residências, permitindo a titulação do seu imóvel. Os instrumentos disponíveis na Lei nº 13.465/17 objetivam a simplificação das regras de maneira a atenuar, desburocratizar e conferir agilidade aos procedimentos de regularização fundiária que irão proporcionar a organização da ocupação do solo urbano.

Dentre os institutos conceituados no art. 11 da Lei nº 13.465/17 (Reurb), os que têm maior dimensão, porque definem procedimentos pelos quais a regularização fundiária deverá passar até alcançar seu objetivo, encontram-se nos incisos IV a VII, respectivamente, a demarcação urbanística, a Certidão de Regularização Fundiária (CRF), a legitimação da posse e a legitimação fundiária. Propomos doravante uma breve análise de cada um destes institutos.

Destinada a demarcar a área em questão, a demarcação urbanística irá identificar os imóveis públicos e privados abrangidos pelo núcleo urbano informal e a obter a anuência dos respectivos titulares de direitos inscritos na matrícula dos imóveis ocupados, com a averbação, na matrícula destes imóveis, da viabilidade da regularização fundiária, a ser promovida a critério do Município. Trata-se de um procedimento que visa aparelhar a futura regularização fundiária.

Este instituto foi inserido primeiramente através da Lei nº 11.977/2009 – Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) e disposto na Lei nº 13.465/17 (Reurb), em seu art. 19, prevendo que esse procedimento poderá ser utilizado pelo Poder Público com base no levantamento da situação da área a ser regularizada e na caracterização do núcleo urbano informal a ser regularizado, devendo o auto de demarcação urbanística ser instruído com documentos tais como  a planta e memorial descritivo da área a ser regularizada com as medidas perimetrais da área, a área total, os confrontantes, as coordenadas georreferenciadas, os números das matrículas ou das transcrições atingidas, a indicação dos proprietários identificados e outras exigências previstas no artigo 19.

No caso de Reurb-S (de interesse social), esses documentos serão elaborados pelo Município onde se localizar o núcleo a ser regularizado, pelo órgão municipal encarregado de promover a regularização fundiária. Já nos casos de Reurb-E (de interesse específico), o Município poderá assessorar, orientar e mesmo providenciar a documentação exigida para implementar a Reurb-E, porém os beneficiários arcarão com os custos que lhes serão cobrados posteriormente.

Há casos de núcleos estabelecidos sobre mais de um imóvel, às vezes abrangendo parte de imóvel titulado pertencente a particulares e também estabelecidos sobre outro imóvel, de caráter público, ou seja, parte sobre imóvel particular, e parte sobre imóvel público, daí a importância da demarcação urbanística para levantar com precisão a área a ser regularizada. Salienta-se que, se o núcleo não estiver localizado sobre a totalidade de uma matrícula pertencente a particular, a apuração do remanescente dessa matrícula, após o procedimento de demarcação urbanística, ficará a cargo do proprietário registral.

Outro instituto conceituado e que representa o atingimento do objetivo de todo o processo de regularização fundiária é a Certidão de Regularização Fundiária (CRF). Trata-se de documento expedido pelo Município ao final do procedimento da Reurb, constituído do projeto de regularização fundiária aprovado, do termo de compromisso relativo a sua execução e, no caso da legitimação fundiária e da legitimação de posse, da listagem dos ocupantes do núcleo urbano informal regularizado, da devida qualificação destes e dos direitos reais que lhes foram conferidos. É este documento que, através de registro, conferirá a propriedade aos ocupantes do núcleo regularizado no caso de legitimação fundiária.

A legitimação fundiária é o mecanismo de reconhecimento da aquisição originária do direito real de propriedade conferido por ato do poder público àquele que detiver unidade imobiliária objeto da Reurb. Em relação a esse instituto, esclarece Mário do Carmo Ricalde que, por decorrer de um fato jurídico (tal como na usucapião, na aluvião, na avulsão, entre outros), não há que mencionar recolhimento de impostos ou retificação de área, assim como eventuais gravames na matrícula originária não acompanham a nova matrícula, aberta por tal ocasião. (3)

Ademais, aos imóveis que forem objeto desse instituto, poderão ser dispensadas as exigências relativas ao percentual e às dimensões de áreas destinadas ao uso público ou ao tamanho dos lotes regularizados, assim como outros parâmetros urbanísticos ou edilícios. Nesse sentido, terrenos com dimensões completamente fora dos padrões usuais poderão ser regularizados.

Outro importante instituto é a legitimação da posse, ato pelo qual o poder público confere título a fim de reconhecer a posse de imóvel objeto da Reurb, conversível em aquisição de direito real de propriedade na forma da Lei da Reurb, com a identificação de seus ocupantes, do tempo da ocupação e da natureza da posse. Como salienta Mário do Carmo Ricalde, trata-se de instrumento de uso exclusivo para fins de regularização fundiária, não se aplica a imóveis urbanos situados em área de titularidade do poder público e pode ser transferida por causa mortis ou por ato inter vivos. (4)

Conferido o título de legitimação de posse, decorrido o prazo de cinco anos de seu registro, terá a conversão automática dele em título de propriedade, desde que atendidos os termos e as condições da usucapião especial, prevista no art. 183 da Constituição Federal, que é possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família e desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Ainda, conforme preceitua o §2º do art. 19, a legitimação de posse, após convertida em propriedade, constitui forma originária de aquisição de direito real, de modo que a unidade imobiliária com destinação urbana regularizada restará livre e desembaraçada de quaisquer ônus, direitos reais, gravames ou inscrições, eventualmente existentes em sua matrícula de origem, podendo, referido título, ser cancelado no caso de constatação de que as condições estipuladas na Lei da Reurb deixaram de ser cumpridas. 

3. AS MODALIDADES DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA


A Lei da Reurb, ainda que tenha em seu arcabouço a finalidade primeira de promover a regularização de núcleos habitacionais formados por pessoas com situação de renda de nível baixo, estabeleceu modalidades de regularizações fundiárias indicando critérios diferenciadores, fundamentados na renda dos indivíduos cujo núcleo será legalizado. Isso se deve ao fato de que muitos núcleos são ocupados por indivíduos que tiveram uma evolução financeira e têm condições de arcar com as custas da regularização. O critério da renda é que irá determinar a amplitude da responsabilização pela iniciativa e pelos custos de todo o processo de regularização.

Nas regularizações em núcleos ocupados por indivíduos com melhores condições de renda, cuja responsabilidade pela totalidade dos custos for dos próprios moradores, a denominação será Reurb-E (Regularização Fundiária de Interesse Específico) e, nesses casos, o Poder Público poderá incentivar esses moradores a promover a sua regularização com os devidos esclarecimentos sobre a perspectiva de melhoria das condições de vida dessas populações e valorização do seu patrimônio.

Nos núcleos ocupados por pessoas sem condições de arcar com os custos, e mesmo sem as mínimas condições de dar início ao processo de regularização, a responsabilidade por todas as ações e custos será do Poder Público, ou seja, o Município ou o Distrito Federal. Nessas situações, a denominação será Reurb-S (Regularização Fundiária de Interesse Social).

Para uma clara delimitação e distinção entre a Reurb-S e a Reurb-E (Regularização Fundiária de Interesse Específico) é fundamental a definição das exigências para o procedimento de regularização de cada uma delas. Na Reurb-E, haverá maiores exigências, maior rigorismo nos requisitos. Neste caso, o público alvo fica responsável pela implantação da infraestrutura necessária, pela compensação ambiental, enfim, por todo o custo do projeto, o que poderá se mostrar excessivamente oneroso para os beneficiários. Conforme previsto no art. 33, III da Lei da Reurb, mesmo sendo Reurb-E, em se tratando de núcleos urbanos sobre áreas públicas, caso tenha interesse na regularização e na melhoria das condições paisagísticas do local, o Município poderá responsabilizar-se pela elaboração e custeio do projeto e implantação da infraestrutura necessária. A depender do interesse público e da repercussão da regularização fundiária, bem como das condições de renda da população alvo, o Município poderá buscar o ressarcimento da totalidade ou de parte deste custo.

As medidas de compensação relacionadas aos projetos de regularização na modalidade de Reurb-E poderão, através dos próprios termos de ajustamento de conduta, ser responsáveis pelos aportes de recursos para os estudos e projetos visando a regularização fundiária na outra modalidade, a “S”, dos que não têm condições de arcar com as obras de regularização de seu núcleo.

Na Reurb-S, predominantemente de interesse social, haverá maior participação do Poder Público, quer na elaboração dos estudos técnicos necessários à avaliação do projeto, quer na implantação da infraestrutura essencial para a regularização do núcleo, cabendo ao Município ou ao Distrito Federal esse papel. Quando se tratar de projeto de reurbanização de interesse social, em área pertencente a particular, o custeio de todos estes investimentos ficará sob a responsabilidade do Município ou do Distrito Federal, conforme o caso.

Como estes custos são de altíssimo valor, é possível efetivar convênios, ou outros instrumentos com o Ministério das Cidades, com o intuito de promover as medidas tendentes às reurbanizações, conforme estatui o art. 29 da Lei nº 13.465/17.

Já na Regularização Fundiária, prevista no art. 69 da Lei nº 13.465/2017, ou seja, aquela que diz respeito aos núcleos urbanos informais consolidados com implantação anterior à Lei do Parcelamento do Solo, 19 de dezembro de 1979, também chamado de Reurb-I (Regularização Fundiária Inominada), as exigências serão mais brandas, principalmente porque tais núcleos urbanos informais são adensamentos populacionais consolidados há mais de 30 anos.

Embora a definição do que seja Reurb-S advenha da localização destes núcleos em áreas de ZEIS (Zona Especial de Interesse Social), especificadas nos Planos Diretores dos Municípios, estas áreas também poderão ser definidas por ato do Poder Público, nos casos dos Municípios que, em virtude de seu tamanho, não possuem Plano Diretor.


4. O PROCEDIMENTO DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA


Uma vez examinados os principais institutos regulatórios estabelecidos pela Lei, bem como as modalidades de regularização fundiária, passamos à análise das etapas do procedimento da Reurb. 

A regularização fundiária poderá ser requerida pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, bem como por seus beneficiários diretos (individual ou coletivamente), por proprietários, loteadores ou incorporadores ou ainda por cooperativas habitacionais. Ainda que o legislador tenha incluído o Ministério Público e a Defensoria Pública como legitimados, cabe referir que a atuação dessas instituições deverá se dar no âmbito das respectivas atribuições institucionais.

A Regularização urbana deverá obedecer às fases constantes no art. 28 da Lei nº 13.465/17 (Reurb), tendo início com o requerimento dos legitimados, que deverá ser encaminhado e protocolado no órgão responsável do Município. Esse requerimento deverá conter o tipo de Reurb no qual os beneficiários desejam ser inseridos, de acordo com a renda dos integrantes do núcleo. O requerimento de instauração da Reurb e a manifestação nesse sentido por parte dos legitimados serão formas de garantir, perante o Poder Público, a permanência dos ocupantes nestes núcleos urbanos situados em áreas públicas, preservando-se as situações de fato já existentes em suas respectivas unidades imobiliárias.

Protocolado o requerimento deverá ser processado administrativamente e a seguir o Município deverá se manifestar sobre a possibilidade de ser promovida a Reurb e em qual modalidade deverá se inserir de acordo com a análise prévia da renda da maioria dos beneficiários.

Transposta essa fase, será promovida a notificação dos titulares de direitos reais sobre o imóvel e confrontantes, na qual será conferido prazo para a sua manifestação. A seguir, tem início a fase de elaboração do projeto de regularização fundiária, cuja responsabilidade caberá, nos casos de Reurb-S, ao poder público competente, que será responsável também por implementar a infraestrutura essencial, os equipamentos comunitários e as melhorias habitacionais previstas no projeto de regularização, assim como arcar com os ônus de sua manutenção. Nos casos de Reurb-E a responsabilidade pelo projeto será dos interessados, os ocupantes do núcleo urbano informal com condições de arcar com os custos da regularização. Quando o Município tiver que promover os atos tendentes a regularização em área de Reurb-E, poderá executar essa etapa e cobrar posteriormente dos beneficiários os custos e demais despesas do projeto de regularização.

A fase seguinte será o saneamento do processo administrativo, onde serão levantadas possíveis falhas e omissões, as quais serão sanadas com vistas ao regular andamento do processo de regularização. Uma vez sanadas as possíveis falhas e omissões, será proferida a decisão da autoridade competente, mediante ato formal, ao qual será dada publicidade. Cumpridas todas as fases do processo de regularização, será expedida a CRF (Certidão de Regularização Fundiária) pelo Município, documento que deverá ser levado a registro no Cartório de Registro de Imóveis competente.

Após serem protocolados, CRF (Certidão de Regularização Fundiária) e projeto de regularização fundiária, serão analisados pelo oficial do cartório de registro de imóveis em que se situe o núcleo a ser regularizado e, caso sejam necessárias complementações, serão feitas na forma de exigências, as quais deverão ser cumpridas até que todo o procedimento esteja adequado para registro e possam ser expedidas as certidões das matrículas para cada um dos proprietários dos imóveis objetos da regularização fundiária.

O fluxograma a seguir apresenta progressivamente as principais etapas que constituem o procedimento para a realização da Reurb, desde o requerimento até a emissão da Certidão de Regularização Fundiária, com a abertura de matrículas individualizadas.

Sob este olhar, sendo o Município o licenciador urbanístico do projeto e, sendo o impacto do projeto afeto principalmente sobre o Município, caberá a este ente a responsabilidade sobre o licenciamento. Se o Município não dispuser de órgão ambiental, o órgão ambiental estadual poderá efetuar o licenciamento, respeitada sempre a competência do Município para expedir o licenciamento.

O art. 65 do Código Florestal, estabelece que, na Reurb-E, dos núcleos urbanos informais que ocupam Áreas de Preservação Permanente não identificadas como áreas de risco, a regularização fundiária será admitida por meio da aprovação do projeto de regularização fundiária, na forma da lei específica de regularização fundiária urbana, estabelecendo ainda que o processo de regularização fundiária de interesse específico deverá incluir estudo técnico que demonstre a melhoria das condições ambientais em relação à situação anterior de degradação, com ações de controle dos danos ambientais e urbanísticos já concretizados pela ocupação irregular. 

O projeto de regularização fundiária, além dos necessários estudos ambientais, deverá observar o que dispõe o art. 35 da Lei, ou seja, ser instruído com documentos tais como:

I - levantamento planialtimétrico e cadastral, com georreferenciamento, subscrito por profissional competente, acompanhado de Anotação de Responsabilidade Técnica (ART) ou Registro de Responsabilidade Técnica (RRT), que demonstrará as unidades, as construções, o sistema viário, as áreas públicas, os acidentes geográficos e os demais elementos caracterizadores do núcleo a ser regularizado;

II - planta do perímetro do núcleo urbano informal com demonstração das matrículas ou transcrições atingidas, quando for possível;

III - estudo preliminar das desconformidades e da situação jurídica, urbanística e ambiental;

IV - projeto urbanístico;

V - memoriais descritivos;

VI - proposta de soluções para questões ambientais, urbanísticas e de reassentamento dos ocupantes, quando for o caso;

VII - estudo técnico para situação de risco, quando for o caso;

VIII - estudo técnico ambiental, para os fins previstos na Lei 13.465/17, quando for o caso;

IX - cronograma físico de serviços e implantação de obras de infraestrutura essencial, compensações urbanísticas, ambientais e outras, quando houver, definidas por ocasião da aprovação do projeto de regularização fundiária; e

X - termo de compromisso a ser assinado pelos responsáveis, públicos ou privados, pelo cumprimento do cronograma físico definido no inciso IX.

Deverão ser consideradas ainda as características de como se deu a ocupação para definir como deverão ser exigidas as especificações urbanísticas e ambientais, identificando os lotes, as vias de circulação e as áreas públicas.

A Reurb poderá abranger todo o núcleo irregular ou ser realizada apenas numa parte deste núcleo, de forma que a parte controvertida, por exemplo, aquela que é uma APP (Área de Preservação Permanente) e sobre a qual está assentado parte do núcleo, fique para uma segunda etapa, depois que estudos sejam realizados com vistas a minimizar o impacto que esse assentamento irregular causou na APP.

Uma vez preenchidas as etapas do procedimento da Reurb, buscar-se-á trazer minimamente para a realidade formal do Município aquele núcleo que se formou sem nenhuma condição de planejamento e à margem de qualquer projeto urbanístico ou ambiental.


5. UMA INTERPRETAÇÃO ACERCA DOS OBJETIVOS DA REURB


A Lei nº 13.465/2017 prevê de forma explícita os seus objetivos, a serem observados pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, em seu art. 10. Tomamos como ponto de partida a orientação fundamental da Lei no sentido de diminuir a situação desordenada dos núcleos urbanos informais que foram surgindo sem qualquer controle e fiscalização, oferecendo meios para promover a melhoria nas condições desses núcleos informais, ainda que preservando e mantendo o contexto já estabelecido no núcleo e os moradores do local. A regularização almejada trata da “excepcionalidade” decorrente da situação vigente no país, da falta de prevenção, fiscalização e de ações do Poder Público no sentido de evitar a ocupação de áreas inadequadas, com risco para os ocupantes, áreas de preservação permanente ou outras não condizentes com os padrões normais de habitabilidade e regularidade urbanística.

Os dispositivos presentes na Lei da Reurb têm como objetivo a correção e a adequação destas situações visando a integração destes núcleos irregulares à cidade, conferindo aos seus ocupantes o direito à moradia titulada e ao exercício pleno da cidadania, não se prestando a situações futuras. Dessa forma, os requisitos e as condições foram estabelecidos de forma a não obstaculizar a regularização fundiária, tendo em vista que os novos instrumentos foram criados para melhorar a situação que se apresenta na maioria das nossas cidades. Ainda, nesse sentido, nos aproximamos da análise tecida por Juliana Rubiniak de Araújo, segundo a qual “as novas regras visam desburocratizar, simplificar e, consequentemente, conferir agilidade aos procedimentos de regularização fundiária e organização da ocupação do solo urbano”. (5)

Os principais objetivos da Lei são identificar os núcleos urbanos informais; criar nesses núcleos unidades imobiliárias compatíveis com o planejamento urbano, priorizando a permanência dessas populações nos locais onde se encontram assentadas; prevenir a formação de novos núcleos através de intensa fiscalização; conceder aos ocupantes desses núcleos a propriedade plena da unidade que ocupam, concedendo-lhes direito real, oportunizando que os interessados participem do processo de Reurb.

A Regularização Fundiária permitirá que se tenha maior controle sobre os núcleos urbanos, porque os imóveis integrantes destes núcleos serão incorporados ao sistema registral, ao mercado imobiliário e ao cadastro municipal. Desta forma, tornar-se-á mais efetiva a fiscalização e o controle sobre a formação clandestina de futuros núcleos populacionais irregulares.

Mesmo diante da difícil realidade a enfrentar para promover os atos exigidos a fim de atingir a regularização dos adensamentos populacionais clandestinos, será necessário que encontremos meios de atender as exigências da Lei e assim conferir títulos de propriedade aos beneficiários.

O que deve ser alcançado é o caminho da regularização adequada. A prevenção deve ser buscada incessantemente, através da fiscalização efetiva, de forma a impedir a instalação de novos núcleos clandestinos.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


A Lei da Reurb consolida um novo esforço de amenizar o problema fundiário brasileiro, agora com instrumentos aparentemente mais adaptados à nossa realidade. Cabe aos executores das Reurbs, e aos legitimados, a árdua tarefa de utilizar os instrumentos disponíveis com o objetivo da concretização do “espírito da lei”, que é a regularização dos núcleos urbanos informais, conferindo propriedade plena aos seus ocupantes. 

O objetivo da Lei só será alcançado quando uma verdadeira força-tarefa tiver início, partindo de uma vontade política oriunda dos Municípios, buscando a identificação dos núcleos urbanos informais e dos assentamentos irregulares.

O direito à moradia é um direito fundamental, consagrado no art. 6º de nossa Constituição Federal, e, como tal, deve ser incondicionalmente garantido pelo Estado, ao lado das demais garantias. Nesse sentido, espera-se que a nova Lei da Reurb possa significar um importante passo em direção à proteção desse direito fundamental, bem como, através de seus mecanismos, contribua para a dignidade e a paz social.


(1) É possível encontrar um estudo nesse sentido em: SANTOS, Lourdes Helena Rocha dos; CASTRO, Fabio Caprio Leite de. “A evolução histórica e os novos horizontes da incorporação imobiliária e do condomínio edilício no direito brasileiro”. Revista Síntese – Direito Imobiliário, nº 29, set./out. 2015, pp. 73-103. O artigo foi publicado quando das comemorações dos 50 anos da Lei de Condomínios e Incorporações (Lei nº 4.591/64), perfazendo uma análise histórica dos principais fatos e legislações relacionadas à evolução do tratamento jurídico da ocupação de terras, da regulamentação da propriedade, do urbanismo, da construção e dos condomínios. 

(2) PAIVA, Pedro Lamana. “Regularização fundiária e urbanística”. Texto de palestra proferida no XVIII Congresso Brasileiro do Ministério Público do Meio Ambiente, em 26 de abril de 2018. Disponível em: http://registrodeimoveis1zona.com.br/wp-content/uploads/2018/05/XVIII-Congresso-MP-Meio-Ambiente.pdf

(3) RICALDE, Mario do Carmo. Regularização fundiária rural e urbana – Impactos da Lei nº 13.465/2017. 2ª ed. Campo Grande: Contemplar, 2019, p. 130.

(4) Ibidem, p. 131.

(5) ARAUJO, Juliana Rubiniak de. “Lei 13.465/17: Objetivos e conceitos adotados pela Reurb”. CAMBLER, Everaldo A.; BATISTA, Alexandre Jamal; ALVES, André Cordelli. (Org). Estatuto Fundiário Brasileiro: Comentários à Lei nº 13.465/17. Tomo I. São Paulo: IASP, 2018, p. 309.

Compartilhe: