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Uma Reflexão sobre os Impactos da Inteligência Artificial no Direito

Por: Fábio Caprio Leite de Castro
19/03/2020

RESUMO


O presente artigo visa oferecer uma reflexão sobre as novidades da pesquisa com inteligência artificial e seus desdobramentos no direito. Propomos inicialmente uma abordagem do novo paradigma em inteligência artificial, o deep learning, capaz de desenvolver processos de aprendizagem de máquinas, aperfeiçoando a execução da tarefa para qual ela foi programada. Depois disso, oferecemos alguns exemplos para ilustrar como o Brasil tem se inserido no panorama da pesquisa científica sobre a inteligência artificial, a partir das experiências como a ferramenta VICTOR, criada em um projeto de cooperação do STF e da UnB, ainda em fase inicial de implantação. Além de abordarmos as perspectivas que valorizam o uso da inteligência artificial no direito, apresentaremos uma posição antagônica, que estimula o pensamento crítico e não vê nas tecnologias de inteligência artificial uma solução isolada para enfrentar a crise da cultura jurídica no Brasil.


INTRODUÇÃO


A inteligência artificial já é parte do nosso quotidiano no Brasil. Utilizamos ferramentas na internet todos os dias através de nossos computadores, ipads e smartphones. Participamos de redes sociais digitais, nas quais recebemos e trocamos informações. Tudo em uma velocidade espetacular, praticamente fixada no instantâneo, na reação imediata, na resposta pronta. O direito não escapa a essa realidade e vem passando pelas mais notáveis transformações nos últimos anos. Exemplo disso é a criação do processo eletrônico e de novos dispositivos eletrônicos de assinatura digital e de notificação. Tais avanços, é verdade, não se fizeram de modo uniforme em todo território nacional e nem sempre produziram os efeitos almejados, como a aceleração dos procedimentos e do andamento dos processos.

As novidades da pesquisa com inteligência artificial prometem ampliar a capacidade de acesso e gerenciamento a banco de dados; oferecer melhores ferramentas para a produção de decisões judiciais, petições e acordos; diminuir custos e despesas operacionais no Poder Judiciário e mesmo nos escritórios de advocacia. São esses aspectos que nos fazem levantar a seguinte interrogação: que impactos podemos estimar em um futuro próximo para o uso de inteligência artificial no direito brasileiro?

A fim de traçar os contornos de uma possível resposta para essa pergunta, propomos inicialmente uma análise do novo paradigma do deep learning e da sua aplicação no direito. Veremos através de exemplos como o Brasil tem se inserido no panorama da pesquisa científica sobre a inteligência artificial, a partir das experiências e exemplos ilustrativos, como a ferramenta VICTOR, criada em um projeto de cooperação do STF e da UnB, ainda em fase inicial de implantação.

Além de abordarmos as perspectivas que valorizam o uso da inteligência artificial no direito, apresentaremos uma posição antagônica, que estimula o pensamento crítico e não vê nas tecnologias de inteligência artificial uma solução isolada para enfrentar a crise da cultura jurídica no Brasil.


1. O NOVO PARADIGMA DO DEEP LEARNING 


Um avanço tecnológico exponencial foi produzido nas últimas décadas através confluência de diversas áreas de pesquisa, incluindo a engenharia da computação, a rede de internet, a tecnologia satelitária, a robótica e as neurociências. Nesse sentido, as investigações sobre os modelos e aplicações da inteligência artificial acompanharam a evolução dos computadores modernos com o desenvolvimento de hardware (componentes físicos do computador) e software (programa ou sistema operacional do equipamento).

Ao longo do tempo, foram desenvolvidos diversos modelos de compreensão sobre o que é e como funciona a inteligência artificial – enquanto simulação da inteligência humana no armazenamento de informações e tomada de decisão. Entre esses modelos, destacam-se o “cognitivismo”, baseado na concepção matemática e sequencial de racionalidade e o “conexionismo”, baseado em um modelo paralelo, próprio das redes neuronais. (1) Unidades de pesquisa e empresas privadas discutem estes modelos e têm apostado no avanço tecnológico, como, por exemplo, a Deepmind (2), no campo das máquinas de inteligência artificial, e a SAS – Statistical Analysis System (3), no âmbito do gerenciamento da base de dados.

Na ponta dessas investigações, encontramos o crescente interesse por Deep Learning, ou seja, o “aprimoramento da capacidade dos computadores em classificar, reconhecer, detectar e descrever” (4), isso através de um aprendizado da máquina. Ou seja, a programação inclui a possibilidade de a máquina aperfeiçoar o seu próprio funcionamento. A cada ano são registrados novos passos na capacidade oferecida pela inteligência artificial, especialmente com o armazenamento e acesso a uma gigantesca base de dados, além do aperfeiçoamento dos logaritmos e sistemas de programação.

Há expectativas de que em algum momento seja dado um salto maior do que todos os anteriores em termos de simulação da inteligência humana na tomada de decisão. Muitos autores já falam em prioridades para uma Robust Artificial Intelligence. (5) Por outro lado, há outros autores mais céticos em relação àquilo que se pode produzir em termos de simulação do pensamento humano através da inteligência artificial – enquanto ela estiver baseada em um modelo cognitivo estritamente representacional, uma vez que o ser humano teria uma dimensão não-representacional em seu modo de existir. (6) Tais questões permanecem por enquanto em aberto e suscitam controvérsias acerca das limitações científicas e dos limites bioéticos da pesquisa. Não obstante, é inegável que os avanços se fazem notar e produzem impactos em nosso modo de vida. A vida social tem se transformado de forma acelerada na produção do conhecimento, na velocidade da informação e no uso de aparelhos eletrônicos no quotidiano das profissões.


2. A PESQUISA EM INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO ÂMBITO JURÍDICO


Os avanços tecnológicos produziram uma transformação do modelo da prestação de serviços, cada vez mais operacionalizado e mediado por aparelhos eletrônicos digitais. Atualmente, já convivemos com a realidade habitual do processo eletrônico, da assinatura digital, dos motores de pesquisa de precedente, do uso de aplicativos e da produção automática de dados estatísticos através do acesso aos sites de busca. Em breve, com os mais recentes avanços da pesquisa em inteligência artificial, espera-se uma transformação ainda maior na realidade das profissões jurídicas.

Assim como em outros países, encontramos no Brasil uma grande variedade de investigações envolvendo a inteligência artificial em diversas unidades de pesquisa. Seguindo o espírito de investigação interdisciplinar, professores de engenharia, da ciência da computação e de filosofia do direito da USP criaram a Lawgorithm, com o objetivo de articular a pesquisa acadêmica com iniciativas públicas e privadas “no desenvolvimento de ferramentas computacionais para a atividade jurídica”. (7) A área tem crescido a cada ano. Em meados de agosto de 2018, foi criada a Associação Brasileira das Lawtechs e Legaltechs (AB2L), o que pode ser considerado como um marco nesse debate, dando visibilidade a diversos assuntos, como “automação de documentos, plataformas de acordos e de correspondentes, analytics, monitoramento de dados públicos, entre outros”. (8) 

Para pesquisadores como Juliano Maranhão, professor da Faculdade de Direito da USP e integrante da Lawgorithm, já é uma realidade entre nós a investigação da inteligência artificial “inteligível”, ou seja, realizada a partir de experiências capazes de “integrar a extração de informação e classificação de dados pelos métodos de machine learning aos métodos de representação de conhecimento, nos mais diferentes domínios”, inclusive o direito. (9) Como essas metodologias podem, afinal, modificar o panorama da produção de conhecimento no campo jurídico?

No direito, a inteligência artificial tem peculiar importância, uma vez que ela pode ser utilizada, a partir de uma base de dados e de mecanismos de resolução de problemas, para produzir um juízo justificado. Como refere Juliano Maranhão, observa-se recentemente o crescimento do emprego de Data Systems para “aumentar a eficiência dos operadores do Direito, tanto em escritórios de advocacia quanto em tribunais”. (10) Tais sistemas funcionam como módulos de extração de informações relevantes da base de dados de “precedentes ou contratos (...), tomada de decisões processuais, com a classificação de demandas repetitivas, por exemplo, e para a análise de riscos, com a predição do resultado de eventual ação judicial”. (11)

Por enquanto, os métodos de extração de dados e resultados são ainda pobres, pois somente se estabelece uma correlação no tocante a valores, tipos de demanda, Tribunais, tempo de tramitação etc. (12) O estabelecimento de predições pela correlação entre decisão e tipo de demanda ainda não consegue avaliar os argumentos relevantes disponíveis no caso. Como assevera nesse tocante Juliano Maranhão, “basicamente, as tecnologias empregadas são as mesmas usadas para extração de informações de qualquer tipo de texto e não envolvem qualquer representação específica de inferências e conhecimento jurídico” (13). Atualmente, portanto, um dos desafios da pesquisa em inteligência artificial no direito é a criação de um método de predição que consiga avaliar o próprio teor argumentativo de petições e decisões.

Seguindo essa meta, tem-se avançado a cada ano em três campos fundamentais para a aplicação das ferramentas de inteligência artificial no direito: a análise volumétrica, a jurimetria e a gestão de riscos. No livro-manifesto publicado pela Future Law, As 7 tendências para o uso de inteligência artificial no Direito em 2018, Alexandre Zavaglia Coelho, coordenador do curso de ciência dos dados aplicada ao direito, explica o que são esses três campos. A análise volumétrica consiste na análise do número de processos de determinada pessoa ou empresa, suas causas, os pedidos subsidiários, valores envolvidos e outras informações. (14) De uma qualificada análise volumétrica, incluindo o correto carregamento das informações, com uma base certificada, depende a migração para um sistema informatizado que possa fazer uso das ferramentas de inteligência artificial.

O segundo campo de estudo, a jurimetria, valendo-se da volumetria dos dados, é capaz de aplicar métodos estatísticos e de probabilidade para a elucidação de casos jurídicos. (15) Este termo foi criado recentemente e tem sido aplicado estritamente a esse campo de estudo ainda em desenvolvimento.

Alexandre Coelho sinaliza, ainda, para um terceiro campo de estudo, sobre o qual tem se falado menos, que é o da gestão de riscos, situado, precisamente, entre a volumetria e a jurimetria. A mitigação de riscos potenciais da decisão torna-se um tema essencial dentro desse universo complexo de pesquisas. Somente com o isolamento adequado das variáveis para a formulação de diversos cenários é possível estabelecer, segundo determinados parâmetros, qual é a decisão mais adequada para cada caso. (16) 


3. O USO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NAS PROFISSÕES JURÍDICAS


Se observamos no decurso das últimas duas décadas o uso e a implementação da informática associada aos recursos da internet e das redes de banco de dados, podemos perceber que a implementação de instrumentos digitais já é realidade de instituições públicas e privadas. O que parece ser uma verdadeira novidade diz respeito à possibilidade de uso da inteligência artificial não apenas como um suporte de banco de dados inteligente, mas na execução das operações, ou seja, na tomada de decisão e, portanto, na prestação do serviço.

As instituições públicas e, especialmente, o Poder Judiciário, têm investido e aprimorado ferramentas que se baseiam em inteligência artificial. Como foi noticiado amplamente em 2018, o Supremo Tribunal Federal, em parceria com três centros de pesquisa da Universidade de Brasília, está desenvolvendo uma ferramenta de inteligência artificial batizada de VICTOR (uma homenagem a Victor Nunes Leal, ministro do STF de 1960 a 1969, principal responsável pela sistematização da jurisprudência do STF em Súmula). (17) Esta ferramenta é resultado da iniciativa do STF, sob a gestão da Ministra Cármen Lúcia, para conhecer e desenvolver as pesquisas acerca da inteligência artificial no Poder Judiciário. Em fase inicial de pesquisa, a ferramenta tem por função a leitura dos recursos extraordinários com o objetivo de identificar aqueles que estão vinculados a temas de repercussão geral. 

Embora seja uma pequena parte do projeto, essa fase do processamento requer um “alto nível de complexidade de aprendizado da máquina”. (18) No entanto, o objetivo é ir mais além e aumentar gradualmente as habilidades da ferramenta, a fim de melhorar a velocidade de tramitação dos recursos e eficiência das decisões. Do mesmo modo, os pesquisadores e o próprio Tribunal esperam exportar essa tecnologia aos demais tribunais do país, para assim realizar o pré-processamento de recursos extraordinários quando da sua interposição.

Além desse que é atualmente o maior projeto envolvendo a inteligência artificial no Poder Judiciário – e, talvez, na Administração Pública – há outras pesquisas envolvendo esse tipo de tecnologia. Por exemplo, o Núcleo Permanente de Solução de Conflitos do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro criou uma plataforma de negociação com uso de chatbot — além da parceria com o Ministério Público estadual para identificação automática de ações com danos coletivos. Também o Tribunal de Justiça de Minas Gerais está investindo em ferramenta de inteligência artificial para identificar demandas repetitivas que são julgadas em conjunto. (19) Podemos igualmente mencionar o projeto do Superior Tribunal de Justiça, citado por Alexandre Zavaglia Coelho, do qual ele mesmo participou, cujo objetivo é a identificação de temas da área da saúde para utilização do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. (20)

Por outro lado, como salienta Juliano Maranhão, há múltiplas dificuldades decorrentes da falta de uma política mais ampla para a adoção de tecnologias processuais. Nem todos os tribunais aderiram ao processo eletrônico (PJe), além do que alguns tribunais possuem sistema próprio, como o eProc, utilizado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região e o Projudi, utilizado no Paraná, além dos tribunais que contrataram serviços exclusivos para a gestão de processos e notificações (como em São Paulo e na Bahia), implicando em custo anual elevado. (21) Ou seja, essa falta de unidade faz com que não se tenha hoje no Brasil uma padronização dos sistemas, o que termina por encarecer o serviço e dificultar o seu uso e o acesso aos processos, especialmente para o advogado.

O uso da inteligência artificial também promete afetar diretamente a prestação de serviços relacionada à advocacia e à defesa de direitos. Com base em ferramentas capazes de descrever posições jurídicas (sobre direitos, obrigações, poderes ou imunidades), fundadas na legislação e em precedentes, Juliano Maranhão salienta a criação de chatbots jurídicos que respondem a consumidores quais são os seus direitos em cada caso, ou definam a fornecedores o que é considerado abusivo. (22) Há também pesquisas na área de smart contracts, (23) a partir de programas que realizam a gestão e a execução automática de contratos simples, que não requerem um estudo mais aprofundado e singular de suas condições. Ainda no campo do direito contratual, já existe o interesse em associar os smart contracts a tecnologias de blockchain, de forma que as pesquisas avançam no sentido de produzir ferramentas “capazes de entender contratos cada vez mais complexos e inferir posições individuais”. (24) Dessa forma, novas plataformas estão sendo criadas com o objetivo de produzir uma interação direta e on-line entre credores e devedores, a fim de conduzi-los à resolução consensual de conflitos. No campo do contencioso, ferramentas têm sido criadas por Lawtechs e escritórios de advocacia, cuja técnica pode ir desde a seleção de tipos mais adequados de argumentos até a sugestão de complementação de texto ou citações, tudo isso a partir de uma base de dados. (25) 


4. UMA AVALIAÇÃO SOBRE OS NOVOS CENÁRIOS TECNOLÓGICOS


Procuramos até aqui fazer uma breve introdução ao universo da Deep Learning, mostrando como as pesquisas em inteligência artificial têm avançado no direito. A inteligência artificial, pelos exemplos que apresentamos e pelas pesquisas que seguem seu curso, promete transformar certas práticas e operações no quotidiano das profissões jurídicas. Neste último ponto, pretendemos realizar um exercício crítico a essa nova tendência, considerando a dimensão propriamente humana das profissões jurídicas, além dos contratempos advindos do uso da inteligência artificial e da sua pouca contribuição para solucionar os problemas culturais do ensino e aplicação do direito.

Podemos nos perguntar se a inteligência artificial não representaria uma ameaça às profissões jurídicas como a advocacia, ou mesmo à atividade do Poder Judiciário. Para onde se encaminha a realidade das profissões jurídicas com o uso da inteligência artificial? É difícil fazer qualquer juízo mais longínquo a esse respeito que não tenha uma grande margem de indeterminação. Para um futuro distante, qualquer opinião parece entrar no terreno da ficção científica. No entanto, para um futuro próximo é possível vislumbrar que o serviço jurídico dos escritórios de advocacia e a atuação judicial farão cada vez mais uso das ferramentas computacionais de inteligência artificial. Na Alemanha, como sinaliza Juliano Maranhão, já se fala em uma nova categoria de profissionais, os “engenheiros jurídicos”. Além da especialização técnica para operar com programas será também necessária aos juristas uma formação básica sobre as estruturas lógicas inferenciais. Da mesma forma, também os engenheiros terão de estudar e incorporar a lógica própria da linguagem normativa.

No entanto, com a vênia de um exercício puramente hipotético, mesmo que a tecnologia nos leve a uma inteligência artificial capaz de formular petições, acordos, sentenças e outras decisões complexas, ainda assim nos depararemos com as questões: Desejamos nós uma decisão não-humana para casos complexos? Desejamos ser atendidos por um software de alta inteligência volumétrica e não por um ser humano? A resposta a essas questões encontra exatamente o divisor de águas entre (1) a utilização de ferramentas de inteligência artificial como instrumento e (2) o uso da inteligência artificial como solucionador exclusivo e final dos problemas jurídicos. 

Atualmente, mesmo os que defendem de forma entusiasta o uso de inteligência artificial no direito se situam na defesa do seu uso instrumental, sem excluir a atuação do próprio advogado ou do juiz nas questões mais complexas. De toda maneira, os defensores irrestritos da implementação dessas tecnologias no direito terão de explicar, como em diversas outras áreas da prestação de serviços, como resolver o problema que se prepara em um futuro não tão distante de uma taxa de desemprego e de subemprego fora de qualquer capacidade de previsão.

No que tange ao uso dessas tecnologias em processos políticos, muitos autores como Juliano Maranhão manifestam otimismo, especialmente em relação à participação dos cidadãos nos processos democráticos e em decisões políticas. (26) As plataformas digitais teriam uma função, na sociedade de redes, de influenciar decisões individuais sem o intermédio das organizações. 

Nesse sentido, a interação direta entre usuários de forma segura substituiria funções anteriormente estatais. “Ao abrir a possibilidade de interações seguras e autênticas entre usuários, a tecnologia toma o lugar do Estado”.  Juliano Maranhão cita, hipoteticamente, a dispensa futura da atuação do BACEN (pelo uso das moedas digitais) e mesmo de cartórios de notas ou de imóveis. (28)  

O quanto de fato essas novas tecnologias dispensarão as antigas formas de registro e de controle por parte do Estado, na verdade, permanece uma incógnita. Experiências negativas com investimento em criptomoedas e problemas recorrentes no âmbito do direito registral sugerem que os órgãos estatais terão de permanecer existindo de alguma forma. Além disso, o uso de informações através de Big Data associado à produção de fake news em períodos eleitorais impulsionou o debate sobre os limites desse tipo de tecnologia.

Na contracorrente das pesquisas que referimos anteriormente, importantes autores como Lênio Streck têm adotado posição crítica sobre o uso de inteligência artificial no direito. (29) Para melhor compreender o seu posicionamento, é necessário contextualizar, ainda que rapidamente, a sua desconfiança para com essas tecnologias – especialmente no âmbito da teoria da decisão. Na Crítica Hermenêutica do Direito proposta por Lênio Streck, modelo de pensamento inspirado, sobretudo, em Gadamer e Dworkin, ele apresenta uma vasta concepção que envolve a temática da hermenêutica constitucional e as condições jurídico-democráticas nas quais interpretamos e compreendemos o direito brasileiro. São alvos especiais de sua crítica o ativismo judicial, o relativismo hermenêutico e o modelo de ensino-avaliação dos cursos e concursos de direito no Brasil. É desde essa perspectiva que, além dos livros e obras organizadas, Lênio analisa questões de ordem prática, incansavelmente, toda semana, na Revista Consultor Jurídico. Também é com essa perspectiva que ele parece fazer um recuo em relação às novas tecnologias aplicadas ao direito.

Não se pode fechar os olhos para as novas tecnologias do direito – Lênio Streck o reconhece –, mas ele o faz sem perder de vista que a acessibilidade à informação por via da internet e o uso de complexas programações não necessariamente significam qualidade. As informações são facilmente acessíveis, em pen drives ou nas nuvens; sites vendem petições prontas e robôs intermedeiam acordos; pessoas se comunicam mais e mais por neo-hieróglifos (emojis). (30) No entanto, o conhecimento, e menos ainda o saber, não são meros sinônimos de informação. E daí a grande distância entre os novos “technismos” e uma verdadeira epistemologia, estudada e avaliada por uma cultura jurídica. Transcrevo as palavras de Lênio: “Os melhores centros de estudo do mundo mantêm sua excelência nessa base, incorporando os úteis desenvolvimentos tecnológicos às suas rotinas, mas sem viajar em modismos. (...) Descobertas que facilitam a vida são bem-vindas, mas há falsas facilidades sobre as quais devemos alertar”. (31)

O custo do pragmatismo do ensino está em confundir o texto (o dispositivo) e a norma, a palavra (encontrada na internet) e o conceito, como se a mera aquisição da informação gráfica contivesse em si e por si todo o sentido, que em verdade depende do processo hermenêutico de interpretação e compreensão. É a falsa expectativa criada pelo mero acúmulo de informação sem crítica que leva estudantes e profissionais a preferirem esse modelo e metodologia, não apenas para transmitir e “aprender” o direito, mas para repeti-lo e obter resultados em provas e exames. Com base nessa perspectiva crítica, Lênio apresenta há muitos anos como solução ao modelo decisionista, pautado no “eu, juiz, sei a verdade e decido” e sustentado por uma lógica utilitária do ensino jurídico, uma verdadeira mudança de estudo dos paradigmas jusfilosóficos e da teoria jurídica. “O solipsismo (...) pernicioso que tomou conta do ensino e da aplicação do Direito não será eliminado com tecnologia. Será eliminado com o estudo dos paradigmas jusfilosóficos. E com estudos profundos de teoria jurídica”. (32)

Encaminho-me para o final do presente artigo assinalando a importância da visão crítica desenvolvida por Lênio Streck, da qual partilho em suas linhas gerais, quando se trata de diagnosticar, através dos sintomas no Poder Judiciário, no ensino do Direito e no quotidiano jurídico um verdadeiro problema fundamental de cultura jurídica no Brasil, que expressa de forma diária a sua fragilidade e as falsas ilusões em que se sustenta. A tecnologia poderá gerar mais eficiência na velocidade de tramitação de processos, auxiliar no arquivamento, no gerenciamento de dados e na tomada de decisão. No entanto ela nunca trará, sozinha e isoladamente, qualquer solução para os problemas da aplicação do direito no Brasil.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Nosso primeiro propósito neste artigo foi estabelecer, brevemente, o status da pesquisa em inteligência artificial a partir de um novo paradigma do deep learning, o qual promete trazer ainda muitas mudanças no campo da programação informática aplicada. A complexidade científica e tecnológica nos coloca diante da possibilidade de realizar a programação de máquinas para que elas mesmas aprendam e aperfeiçoem o seu comportamento e as suas decisões.

Também no Brasil, como vimos, essa tecnologia tem sido pesquisada e o nosso país entra pouco a pouco no cenário dos debates científicos sobre o uso e o resultado da aplicação de inteligência artificial. No direito, especialmente, há diversos usos já disponíveis e outros em fase experimental, como o VICTOR no STF, que prometem modificar procedimentos e modelos de decisão nos tribunais.

Colocamos em evidência, além das perspectivas de estudo de Juliano Maranhão e Alexandre Zavaglia Coelho, que valorizam o lado promissor do uso da inteligência artificial no direito, uma posição crítica antagônica, oferecida por Lênio Streck, que não vê no avanço dessas tecnologias o verdadeiro caminho para a solução da crise jurídica profunda pela qual passa a cultura jurídica brasileira.

O grande desafio da pesquisa em inteligência artificial no direito será transpô-la como ferramenta útil à solução dos conflitos sem fazer dela um fim em si mesmo. Nesse sentido, o uso da inteligência artificial em sistemas de busca de dados, processos de tomadas de decisão e redação de contratos deve ser feito com reflexão crítica. A inteligência artificial jamais será suficiente para resolver os problemas de nossa cultura jurídica e devemos ter o cuidado, inclusive, para que ela não os aprofunde ao criar falsas expectativas de que, em algum momento, o automatismo possa nos desobrigar a pensar.


(1) PESSIS-PASTERNAK, Guitta. Do caos à inteligência artificial – Quando os cientistas se interrogam. Entrevistas de Guitta Pessis-Pasterniak. Trad. Paulo Rouanet. São Paulo: Unesp, 1993, p. 20.

(2) DEEPMIND. Consultar: https://deepmind.com/ 

(3)SAS. Consultar: https://www.sas.com/pt_br/home.html

(4) Ibidem.

(5) RUSSEL, Stuart; DEWEY, Daniel; TEGMARK, Max. “Research priorities for Robust and Beneficial Artificial Intelligence”, AI Magazine, 2015, pp. 105-114.

(6) Cf. DREYFUS, Hubert L. “Why Heideggerian AI Failed and How Fixing it Would Require Making it More Heideggerian”. Philosophical Psychology, vol. 20, nº 2, pp. 247-268; GOMES, Rodrigo Benevides Barbosa Gomes. “Hubert Dreyfus e Martin Heidegger: Representação e cognição”, Kínesis, Vol. X, n° 22, 2018, p.164-175.

(7) MARANHÃO, Juliano Souza de Albuquerque. “A pesquisa em inteligência artificial e Direito no Brasil”, Revista Consultor Jurídico, 09/12/2017. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-dez-09/juliano-maranhao-pesquisa-inteligencia-artificial-direito-pais.

(8) COELHO, Alexandre Zavaglia. A ciência de dados e a inteligência artificial no Direito em 2018 – Parte I, Revista Consultor Jurídico, 01/01/2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jan-01/zavaglia-ciencia-dados-inteligencia-artificial-direito.

(9) MARANHÃO, Juliano Souza de Albuquerque. “A importância da inteligência artificial inteligível no Direito”, JOTA, São Paulo, 22/02/2019. Acessado em: ttps://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-importancia-da-inteligencia-artificial-inteligivel-no-direito-22022019.

(10) Ibidem.

(11) Ibidem.

(12) Ibidem.

(13) Ibidem.

(14) COELHO, Alexande Zavaglia. As 7 tendências para o uso de inteligência artificial no Direito em 2018. São Paulo: Thomson Reuters, 2018, p. 16.

(15) Ibidem, p. 17.

(16) Ibidem, p. 19.

(17) SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. “Inteligência artificial vai agilizar a tramitação de processos no STF”, 30/05/2018. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=380 038.

(18) Ibidem.

(19) MARANHÃO, Juliano Souza de Albuquerque. “Uso de inteligência artificial no Judiciário requer planejamento”, Revista Consultor Jurídico, 17/12/2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-fev-17/juliano-maranhao-uso-ia-judiciario-requer-planejamento

(20) COELHO, Alexandre Zavaglia. A ciência de dados e a inteligência artificial no Direito em 2018 – Parte II, Consultor Jurídico, 01/01/2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jan-01/zavaglia-ciencia-dados-inteligencia-artificial-direito-ii

(21) MARANHÃO, Juliano Souza de Albuquerque. “Uso de inteligência artificial no Judiciário requer planejamento”, op. cit.

(22) Ibidem.

(23) Ibidem.

(24) Ibidem.

(25) Ibidem.

(26) MARANHÃO, Juliano Souza de Albuquerque. “A e-Democracia é democracia”, JOTA, São Paulo, 26/12/2018. Acessado em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/e-democracia-26122018.

(27) Ibidem.

(28) Ibidem.

(29) STRECK, Lênio. “Direito high tech não encurta a orelha de alunos e professores!”, Revista Consultor Jurídico, 23/08/2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-ago-23/senso-incomum-direito-high-tech-nao-encurta-orelha-alunos-professores.

(30) Ibidem.

(31) Ibidem.

(32) Ibidem.


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