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(Im)possibilidade da COVID-19 ser caracterizada como acidente do trabalho.

Por: Manuela Godoi de Lima Hartmann e Ursulla Cardoso Alves
08/02/2021

O surgimento da Covid-19 apresentou ao mundo jurídico trabalhista o questionamento quanto à possibilidade dessa doença ser caracterizada como acidente de trabalho perante a legislação do trabalho vigente no Brasil. Inúmeras têm sido as discussões acerca dessa temática dado o alto grau de impacto às relações de trabalho. 

Referida temática ganhou maior ênfase, especialmente, a partir da publicação da Medida Provisória N. 927/2020, editada na data de 22/03/2020, que no seu artigo 29 passou a prever que “os casos de contaminação pelo coronavírus (Covid-19) não serão consideradas ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal”. Esse dispositivo gerou insatisfação por parte de alguns segmentos da sociedade, que entraram com Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI)  perante o Supremo Tribunal Federal (STF) questionando referida norma, sob alegação de violação a direitos fundamentais dos trabalhadores. 

Ao julgar as ADI’s, em 29/04/2020, o STF, por maioria (7 votos a favor e 3 contra), decidiu afastar liminarmente a eficácia de referido artigo e a presunção relativa de que a Covid-19 não possui natureza ocupacional. 

Diante da caducidade da MP 927/2020 perde-se o objeto da análise pormenorizada do artigo 29, bem como da respectiva decisão liminar do STF sobre o tema. No entanto, a discussão da temática acerca da caracterização da Covid-19 como acidente de trabalho continua sendo relevante para as relações de trabalho diante da possibilidade de ser enquadrada como doença do trabalho.


ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO APLICÁVEL À CARACTERIZAÇÃO DO ACIDENTE DE TRABALHO E A (IM)POSSIBILIDADE DA COVID-1 SER ENQUADRADA  COMO ACIDENTE DE TRABALHO. 


A caracterização do acidente de trabalho encontra previsão na Lei N. 8.213/91 (Lei de Planos de Benefícios da Previdência Social), a qual, nos artigos 19 a 23, divide os acidentes de trabalho em três categorias: i) acidente tipo/acidente típico; ii) doenças ocupacionais (que se dividem em doenças do trabalho e doenças profissionais) e, ainda, iii) as situações que se “equiparam” aos acidentes de trabalho. 

Para caracterização do acidente tipico é necessário verificar: a) o momento e o local de ocorrência; b) a existência de lesão corporal ou perturbação funcional; e c) incapacidade ao trabalho, seja parcial ou temporária. Já as doenças ocupacionais podem ser: a) doença profissional, assim entendida e produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social; ou b) doença do trabalho, assim entendida e adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente. 

Sendo assim, resta afastada a possibilidade da contaminação pelo novo coronavírus ser enquadrada como acidente tipo (artigo19) ou doença profissional (artigo 20, II), uma vez que não se refere a uma patologia decorrente de determinada atividade. Portanto, resta apenas a eventual hipótese de ser caracterizada como doença do trabalho. 

Mas, para se falar no enquadramento de determinada doença como doença do trabalho, deve haver comprovação do nexo causal entre a doença e o trabalho desenvolvido pelo trabalhador, ou seja, o ambiente em que o trabalho se desenvolve deve ser a causa, direta ou indireta, para a ocorrência do dano. 

O anexo II do Decreto N. 3.048/99 estabelece os agentes patogênicos causadores de doenças profissionais ou do trabalho e nas listas A e B dispõe que o adoecimento laborativo pode ocorrer por agentes biológicos. Nesse mesmo sentido é a diretriz da Organização Internacional do Trabalho, a qual em sua Lista de Doenças Ocupacionais traz que é possível haver nexo causal entre o agente biológico e a atividade laborativa, mas desde que haja comprovação da relação entre ambos. 

Não há dúvidas de que a Covid-19 se trata de um agente biológico, mas somente esse elemento não é suficiente para caracterizá-la como doença do trabalho. Faz-se necessário, também, comprovar que o labor foi a causa da incapacidade, bem como o vínculo entre o adoecimento do trabalhador e a atividade profissional. 

Sendo assim, a Covid-19, por se tratar de um agente biológico, poderá ser considerada uma doença do trabalho aos profissionais da área de saúde que mantenham contato efetivo com referido vírus (seja no atendimento de pessoas infectadas e/ou manipulação de material). 

A Lei 8.213/91 afirma que não podem ser consideradas como doença do trabalho: i) doença degenerativa; ii) inerente a grupo etário; iii) não produza incapacidade laborativa; iv) doença endêmica adquirida por segurado habitante da região em que ela se desenvolva, salvo comprovação pela natureza do trabalho. 

Portanto, ao analisar referida parte da legislação previdenciária, verifica-se que o legislador exclui a possibilidade de doenças endêmicas serem caracterizadas como doença do trabalho. Contudo, ressalvou em relação às enfermidades que se relacionam diretamente com o trabalho. Portanto, ainda que se trate de uma enfermidade endêmica, mas que foi desenvolvida no local do trabalho será realizado o enquadramento como doença do trabalho. 

Embora nas exceções citadas acima não constem as doenças decorrentes de pandemia, por analogia às doenças endêmicas, não há dúvidas quanto à aplicabilidade de referida excepcionalidade prevista na Lei de Benefícios quanto à Covid-19, uma vez que não faz sentido excluir as doenças endêmicas com repercussão menor e considerar as doenças decorrentes da pandemia que atingem um maior número de pessoas. 

Isto posto, o que se concluiu é que o trabalhador que tiver exposto diretamente ao agente biológico (Covid-19) em decorrência da sua atividade profissional, mediante contato direto com o vetor e/ou agente transmissores, terá ampliada a possibilidade de enquadramento como acidente de trabalho em eventual contaminação. 

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