
Revolucionando o Mercado Imobiliário: A ascensão das Proptechs nas Locações On Demand
Resumo
O mercado imobiliário tem vislumbrado o crescimento do volume de locações de imóveis prontos para morar via aplicativos ou plataformas digitais, realizadas por empresas startups especializadas no setor, as chamadas proptechs. Nessa modalidade de locação, a proptech promove a gestão como um todo, desde a assinatura do contrato até a conclusão da relação contratual, podendo, inclusive, oferecer serviços adicionais aos locatários. Propõe-se com o artigo um exame mais detalhado desse tipo de locação, colocando em evidência as principais características desta modalidade contratual, com o objetivo de avaliar as suas vantagens na perspectiva de cada partícipe da relação, quais sejam: o locador, o locatário e também as incorporadoras, as quais buscam nessa parceria uma forma de acelerar as vendas das suas unidades imobiliárias para investidores interessados na aquisição de imóveis para locação. Por fim, coloca-se em relevo o atual debate, tanto na doutrina, como na jurisprudência, inclusive no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, acerca da natureza jurídica dos contratos de locação por temporada realizados através de aplicativos ou plataformas digitais.
Introdução
Em um contexto de intensa evolução tecnológica, diversas startups surgiram nos últimos anos com o objetivo de trazer inovações no setor imobiliário, as chamadas proptechs. Essas empresas identificaram as dores das construtoras, incorporadoras, investidores, imobiliárias e locatários, trouxeram soluções modernas e reinventaram diversos setores do mercado imobiliário, como, por exemplo, a venda de imóveis, a contratação do crédito imobiliário, o processo de locação, as reformas dos imóveis, entre outros.
No setor de locações, as proptechs apresentaram novos conceitos e soluções para alugar um imóvel, de modo mais célere e menos burocrático, maximizando, assim, a satisfação de todos os partícipes do negócio. Essas proptechs oferecem uma gestão completa do processo de locação do imóvel, desde o início, inclusive para mobiliar o apartamento, negociar com o locatário, assinar o contrato de locação e, ainda, fazer a gestão da relação locatícia até a sua extinção.
As proptechs possibilitam o aluguel do imóvel para curta, média e longa duração, de forma que as pessoas conseguem alugar imóveis conforme as suas necessidades e o momento de vida, tornando a moradia mais flexível. Além disso, essas empresas oferecem moradias on demand, ou seja, possibilitam a contratação de diversos serviços integrados para o locatário, tais como faxina, streaming, áreas de convivência e, até mesmo, manutenção do imóvel, agregando valor ao mesmo.
Do ponto de vista do locador, além das proptechs fazerem toda a gestão da locação, os apartamentos, em sua maioria, são negociados já prontos para morar, de modo que o locador tampouco precisa envolver-se na reforma e decoração do imóvel. Por sua vez, do ponto de vista do locatário, este pode mudar-se a qualquer momento, apenas com os seus itens pessoais, contando, portanto, com maior comodidade e praticidade. Assim, os imóveis que possuem a gestão de proptechs são mais facilmente negociados, ficando menos tempo desocupados quando em comparação com imóveis que não possuem a gestão dessas empresas, o que torna a locação mais rentável para o proprietário investidor.
Percebendo que esse modelo de negócio vem ganhando espaço no mercado, as incorporadoras têm lançado empreendimentos em parceria com proptechs, o que atrai investidores e potencializa a venda dos imóveis, trazendo uma grande vantagem também para as incorporadoras.
Tendo em vista que as proptechs aliam os interesses de investidores, incorporadoras e locadores, elas vêm ganhando cada vez mais espaço no cenário nacional. Em pesquisa recente, foi observado no Brasil um aumento de cerca de 235% de startups voltadas para o mercado imobiliário, em apenas 5 anos1, o que demonstra o sucesso desse modelo de negócio.
O aumento exponencial dessas startups e deste novo modelo de locação traz consigo diversos debates jurídicos que, no entanto, ainda não se encontram pacificados no âmbito da doutrina e da jurisprudência. Um exemplo disso é a recente discussão, inclusive no âmbito do Superior Tribunal de Justiça através do julgamento dos Recursos Especiais nºs 1.819.075/RS e 1.884.483/PR, acerca da natureza jurídica deste contrato, sobretudo quando envolve locação por curto período e com serviços incluídos. Nesse sentido, conforme se verá, há divergência de entendimento quanto a se tratar de contrato de locação de curta temporada, contrato de hospedagem, ou, ainda, hospedagem atípica.o modo como o negociador se posiciona em relação ao outro e como ele mesmo se vê.
1. O que são as empresas proptechs?
Uma empresa proptech é uma empresa startup que atua especificamente no mercado imobiliário. Para os leitores não familiarizados com o significado de startup, trata-se de uma empresa nova e com um modelo de negócio escalável, disruptivo e repetível2, que traz uma ideia inovadora, seja através de um produto ou de um serviço, a fim de apresentar soluções para determinado setor da sociedade, normalmente utilizando-se de tecnologia nestas soluções. Nas palavras de Éderson Garin Porto, “Qualquer negócio que desafia o óbvio e flerta com o desafio, buscando a inovação é, por definição, uma Startup”3.
No âmbito das proptechs, vislumbram-se soluções através do uso da tecnologia (softwares e aplicativos), voltadas para o mercado imobiliário em seus diversos ramos, como por exemplo, na venda de imóveis, no crédito imobiliário, nas locações, nas reformas, entre outros. O termo “proptech” é a junção das palavras em inglês “property”, que significa propriedade, e “technology”, que significa tecnologia, traduzindo-se, portanto, como a “tecnologia de propriedade” ou ainda “tecnologia imobiliária”4.
De fato, as proptechs, revolucionaram o mercado imobiliário. Afinal, quem ainda utiliza os classificados dos jornais para buscar imóveis para comprar ou alugar? Quem ainda vai presencialmente nas imobiliárias para verificar os imóveis disponíveis para venda ou locação? Certamente, uma parcela da população cada vez menor. Atualmente, estas operações de compra e aluguel de imóveis são realizadas de forma muito mais rápida, com menos burocracia, através do computador ou dos smartphones, sem sair de casa.
As empresas proptechs objetivam solucionar as dores do mercado imobiliário como um todo, tanto das empresas como das pessoas físicas. Assim, podem ser classificadas como empresas b2b (business 2 business), que são as proptechs que objetivam resolver os problemas internos das empresas do setor imobiliário, como as incorporadoras, imobiliárias ou instituições de crédito; e empresas b2c (business 2 consumer), que são as proptechs que objetivam resolver as dores do consumidor final, facilitando as negociações, seja na venda ou na locação de imóveis5.
Nos últimos anos, surgiram no Brasil algumas empresas que, através de suas plataformas online, colocam imóveis para alugar que já estão absolutamente prontos para morar, com toda a mobília (nova e bonita), fornecida pela própria empresa proptech, e até mesmo com eletrodomésticos portáteis, como, por exemplo, cafeteira, liquidificador, além de itens decorativos, como luminárias, tapetes, almofadas etc., e até mesmo com os serviços de streaming já contratados. Ou seja: o inquilino leva apenas os seus itens pessoais para a mudança, todo o resto o apartamento provê. Neste modelo de locação, algumas plataformas oferecem ao locatário, se este assim quiser, serviços de limpeza, manutenção, lavanderia, entre outros.
As empresas proptechs que atuam on demand fazem também toda a gestão do contrato, de forma que o proprietário do imóvel não precisa se preocupar com as demandas que surgirem durante o período da locação. As facilidades para os locadores e para os locatários são inúmeras. Muito rapidamente as incorporadoras identificaram as vantagens desse modelo de locação e começaram a fazer parcerias com essas proptechs do setor de locações, divulgando-as em seus empreendimentos imobiliários.
2. O funcionamento das locações de imóveis prontos para morar através das proptechs
As plataformas das proptechs do setor de locações são simples e de fácil entendimento, com mecanismos eficientes de busca de imóveis, utilizando-se de inteligência artificial, por exemplo, para a realização de tour virtual no imóvel, através de sistemas de realidade virtual. Na própria plataforma é possível verificar os serviços porventura adicionados ao aluguel do imóvel, que podem ser streamings, lavanderia, limpeza, minimercado, aluguel de carros, entre outras facilidades. Da mesma forma, o interessado no aluguel consegue saber exatamente o preço total que irá pagar pelo período desejado, sem surpresas na contratação.
As proptechs existentes no mercado de locações atuam na gestão de imóveis novos ou usados. As proptechs que atuam na gestão de imóveis novos costumam realizar parcerias com as incorporadoras, participando desde o início do empreendimento, razão pela qual os imóveis já são construídos e pensados para maximizar os lucros e diminuir os custos, criando a experiência da moradia citada anteriormente.
Contudo, há empresas que se especializaram em reformar imóveis mais antigos e revitalizá-los, a fim de modernizá-los e torná-los tecnologicamente mais integrados. Dessa forma, apartamentos que não chamavam atenção de potenciais locatários passam a ter maior visibilidade e competitividade no mercado, aumentando as chances de serem alugados. Ou seja, não são somente os proprietários de apartamentos novos que se beneficiam dos serviços das proptechs, mas também os proprietários de imóveis mais antigos, após a revitalização feita por essas startups.
As vantagens da atuação destas proptechs no setor imobiliário são inúmeras para o incorporador, o locador e o locatário.
Sob a perspectiva do incorporador, lançar um empreendimento em parceria com essas startups tem-se mostrado um chamariz para investidores, uma vez que os imóveis on demand são um grande diferencial em relação aos demais empreendimentos. Além disso, as incorporadoras se beneficiam das ações de marketing das proptechs, que são direcionadas ao investidor do mercado imobiliário, de modo que a startup conecta a incorporadora com o público-alvo do empreendimento.
Os imóveis prontos para morar tornam a rentabilidade do investimento maior, chegando a ser 40% superior aos demais6. Nesse sentido, o empreendimento que possui parceria com as proptechs tende a ter as vendas aceleradas7, pois se mostra um excelente negócio para os investidores.
Em relação ao locador, igualmente há vantagens com o serviço. Muitas vezes, o proprietário adquire o imóvel não para moradia, mas como forma de investimento, já visando a sua locação para gerar renda. Nesses casos, o investidor normalmente não tem disposição para se envolver com a reforma do imóvel, tampouco com a resolução de eventuais problemas que possam vir a ocorrer. Também o proprietário de imóveis mais antigos se beneficia da atuação da proptech, pois esta pode realizar a reforma do apartamento, deixando-o mais competitivo no mercado. Assim, a vantagem de investir em um imóvel gerido pelas proptechs é a ausência de necessidade de envolvimento com a reforma, decoração e gestão do bem, ficando tudo sob responsabilidade da empresa. Tanto no caso de imóveis novos, quanto no caso de antigos, a gestão da proptech torna o período de vacância do imóvel potencialmente menor, tendo em vista a sua maior visibilidade. Da mesma forma, a proptech se encarrega de cobrar o aluguel e repassá-lo ao proprietário e, em certos casos, até mesmo garante o pagamento durante o período do contrato. Nessa hipótese, ocorrendo a inadimplência do inquilino, ainda assim o locador irá receber o valor ajustado.
Em relação à gestão da locação, a proptech se encarrega de todas as etapas do contrato, desde a sua assinatura até o encerramento da relação locatícia. Exemplificando, a empresa assina o contrato pelo locador, faz a gestão da entrega das chaves do imóvel ao locatário, recebe o valor dos locativos, transfere-o ao proprietário com o desconto de sua taxa, efetua o atendimento de eventuais chamados dos locatários durante o período da locação, promove a gestão da contratação de eventuais serviços terceirizados de limpeza ou lavanderia e, ao final do contrato, auxilia na vistoria final e entrega de chaves. Logo, ter um imóvel sob a gestão dessas startups se mostra extremamente prático e vantajoso para o proprietário.
Sob o ponto de vista do locatário, estas locações por aplicativo ou plataforma digital têm como vantagem possibilitar o aluguel conforme a sua necessidade, em contratos de curta, média ou longa duração, tornando a moradia mais prática e flexível. Sabemos que as necessidades em relação à moradia se modificam ao longo da vida. Por exemplo, o primeiro apartamento costuma ser menor, perto do local de estudo. Posteriormente, visando a constituição de uma família, a moradia tende a ser mais espaçosa, em locais próximos ao trabalho. Dessa forma, poder alugar um imóvel pronto, decorado e pensado para ser o mais funcional possível, nas diversas etapas e contextos de vida, é uma das grandes vantagens para o locatário.
Além disso, a ausência de burocracia para alugar o imóvel também é um ponto positivo. O inquilino consegue verificar todos os custos da locação durante a pesquisa do imóvel e, em alguns casos, a proptech viabiliza o pagamento de todas as contas no mesmo boleto, facilitando o controle financeiro dos usuários. As proptechs também permitem a concretização da locação em apenas um clique na própria plataforma, por vezes sem exigir a apresentação de fiador, o que deixa todo o processo mais célere. Outra importante vantagem diz respeito aos diversos serviços oferecidos ao locatário, como wi-fi, streamings, limpeza e manutenção do imóvel.
Dessa forma, explanadas as principais vantagens desta modalidade de contratação, passaremos, a seguir, a discorrer sobre um dos principais debates que a doutrina e a jurisprudência têm enfrentado: a determinação da natureza jurídica deste tipo de contrato e, consequentemente, da legislação aplicável.
3. A atual divergência acerca da natureza jurídica do contrato de locação via aplicativo ou plataforma digital
As proptechs especializadas nas locações via aplicativo ou plataforma digital permitem que o locatário alugue determinado imóvel para curta/média duração (short stay) e longa duração (long stay).
Tratando-se de locação por longa duração (long stay), que se caracteriza por contratos acima de 90 dias, não há dúvidas de que se trata de uma relação locatícia e que, portanto, se aplica a Lei de Locações (Lei nº 8.245/91). O fato de a contratação se dar através de um aplicativo ou de uma plataforma digital não tem por efeito descaracterizar o contrato como locatício. Os contratos celebrados por proptechs para aluguel de imóvel residencial pelo período de 30 meses, a título de exemplo, em nada diferem das locações convencionais.
A dúvida surge quando se trata de uma locação por curta duração (short stay). A discussão acerca da natureza jurídica do contrato, nesta hipótese, ocorre em função das semelhanças com o contrato de hospedagem, pois o locatário permanece no imóvel por curto período; muitas vezes o valor do aluguel é calculado através de diárias; bem como o locatário pode fazer uso de determinados serviços adicionais, como limpeza, manutenção, lavanderia, entre outros. O debate, nesse sentido, consiste em saber se os referidos contratos teriam natureza jurídica de contrato de locação por temporada, prevista no art. 488 da Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245/91), a qual se caracteriza por período inferior a 90 dias; contrato de hospedagem, aplicando-se, neste caso, a Lei Geral do Turismo (Lei nº 11.771/2008); ou, ainda, uma modalidade atípica de hospedagem, para a qual ainda não haveria uma lei específica.
O debate supramencionado é de suma importância do ponto de vista jurídico. Para além de estabelecer qual a lei aplicável em cada caso, a natureza jurídica do contrato impacta também nos tributos incidentes (IR ou ISS, se locação ou hospedagem, respectivamente) e pode, ainda, gerar discussões sobre a natureza do empreendimento imobiliário no qual o imóvel está inserido, no sentido de ser residencial ou não, e, consequentemente, necessitar de alvará específico para funcionamento.
A doutrina diverge em relação à qualificação desse tipo de contrato. Para o doutrinador Silvio Venosa, aos negócios jurídicos imobiliários realizados através de plataformas digitais não se aplica a Lei de Locações, tendo em vista que esse contrato seria uma modalidade de hospedagem. Acrescenta, ainda, que na locação por temporada há inquilinos, enquanto no contrato por plataformas digitais se fala em hóspedes9. Por fim, menciona que existe a necessidade de uma legislação específica para essa modalidade de hospedagem, na medida em que a Lei Geral do Turismo está voltada para estabelecimentos de hotelaria, não se amoldando, em absoluto, para conjuntos residenciais comuns10.
Na mesma linha, na obra de Caio Mário da Silva Pereira, atualizada por Sylvio Capanema de Souza e Melhim Namem Chalhub, comenta-se que se multiplicaram as hipóteses de locações de imóveis apenas por um final de semana, mas isso, no entanto, não teria sido a intenção do legislador ao admitir a locação por temporada. Assim, entendeu-se que se estaria diante de uma “locação atípica”11.
Em sentido oposto, o jurista Luiz Antônio Scavone Junior refere que, caso o contrato seja realizado, por qualquer motivo, para residência temporária do locatário, desde que não ultrapasse o prazo de 90 dias, será regido pela Lei de Locações, não se tratando de contrato de hospedagem. Ademais, afirma que o curto lapso temporal que pode existir entre as locações, por vezes, apenas um final de semana, não desqualifica esse tipo de contrato, pois a lei estipula prazo máximo de duração, mas não um tempo mínimo12.
Esse debate estendeu-se à jurisprudência. Recentemente, a 3ª e a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça julgaram a possibilidade de os condomínios proibirem ou não, em suas respectivas convenções, que os condôminos façam uso das plataformas digitais para a locação de seus imóveis e, no bojo de ditos acórdãos, discorreram acerca da natureza jurídica de tais contratos. O tema condominial certamente merece um estudo específico. No entanto, nosso interesse nesses julgados, para o presente estudo, volta-se exclusivamente ao entendimento do STJ acerca da natureza jurídica destes contratos.
Em abril de 2021, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça enfrentou essa questão no julgamento do Recurso Especial nº 1.819.075/RS. Em síntese, na ação de obrigação de fazer, que tramitou no Rio Grande do Sul, determinado condomínio situado em Porto Alegre/RS pretendia proibir que dois condôminos, coproprietários de dois apartamentos, colocassem os seus respectivos imóveis para locação por curto período e mediante remuneração por intermédio de plataformas digitais, o que, em tese, caracterizava atividade de hospedagem, violando a convenção do condomínio, tendo em vista que haveria “alteração da destinação do edifício para comercial”13. A ação foi julgada procedente em primeiro grau e a sentença foi confirmada em sede de apelação pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Em sede de Recurso Especial buscou-se definir a natureza jurídica dos contratos celebrados através das plataformas digitais.
O Relator do Recurso Especial foi o Ministro Luis Felipe Salomão, que, salienta-se desde já, foi o voto vencido. Em seu voto, invocando a Lei Geral do Turismo, afirmou que o contrato de hospedagem exige a prestação de um complexo de serviços. Defendeu, ainda, que o fornecimento de internet e lavagem de roupas, de modo circunstancial, como ocorreu no caso concreto, não seria capaz de desqualificar um contrato de locação por temporada, pois não se assemelha ao complexo de serviços exigidos para caracterizar um contrato de hospedagem.
O Ministro Raul Araújo iniciou a divergência. Em seu entendimento, o contrato realizado pelas plataformas digitais seria um novo modelo de contrato de hospedagem. Afasta, nesse sentido, o reconhecimento de uma locação por temporada, confrontando o caso concreto com os preceitos do art. 48 da Lei de Locações. Ademais, sustenta que, tampouco, se trataria de um contrato típico de hospedagem, uma vez que inexiste, nesses casos, a estrutura e o profissionalismo exigidos para se permitir que essa modalidade de contratação seja inserida na Lei Geral do Turismo.
A Ministra Maria Isabel Gallotti e o Ministro Antônio Carlos Ferreira acompanharam o voto divergente. Especialmente, o Ministro Antônio Carlos Ferreira ponderou que a contratação, por meio das plataformas digitais, não tem o condão de transformar a natureza de locação e que, no entanto, dependendo dos serviços que forem prestados, se pode reconhecer a existência da prestação de serviço de hospedagem, afastando a natureza da locação por temporada, o que, contudo, precisará ser aferido casuisticamente.
Dessa forma, neste julgamento, o entendimento da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por maioria absoluta de votos, foi de que os contratos celebrados por plataformas digitais (no caso específico a plataforma chamada Airbnb) são contratos atípicos de hospedagem.
Posteriormente, foi a vez da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça se debruçar sobre a questão. Em novembro de 2021, esta Turma julgou o Recurso Especial nº 1.884.483/PR14, no qual foi mantido o posicionamento da 4ª Turma acerca da natureza dos contratos celebrados por meio de plataformas digitais por curtos períodos.
O referido Recurso Especial é oriundo de ação anulatória ajuizada por um condômino em face de determinado condomínio que visava anular a Assembleia que alterou a convenção e adicionou cláusula de proibição de locações por período inferior a 90 (noventa) dias. A sentença de primeira instância foi de procedência da ação, com a consequente anulação da deliberação da Assembleia. Desta decisão, o condomínio interpôs recurso de apelação, o qual foi provido, julgando improcedente o pleito do condômino autor.
O Relator do acórdão foi o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Em seu voto, mencionou que o contrato celebrado por meio das plataformas digitais teria natureza jurídica de hospedagem atípica e que seria lícito ao condomínio proibir estas contratações via plataformas ou aplicativos em empreendimentos de natureza residencial.
O Ministro Marco Aurélio Bellizze, por sua vez, concordou com o Relator em relação à licitude de o condomínio impedir essas contratações em empreendimentos residenciais. No entanto, divergiu na interpretação acerca da natureza desses contratos celebrados via plataforma digital, entendendo tratar-se de locação por temporada, no caso concreto. Mencionou, nesse sentido, que a locação por temporada assim se caracteriza independentemente do meio pelo qual é viabilizada (no caso, por meio de plataforma digital), por seu prazo, o qual fica limitado ao período de 90 dias, nos termos do art. 48 da Lei n. 8.245/1991. Concluiu, ainda, que os aspectos que desvirtuariam a locação por temporada seriam a fragmentação do imóvel para acolher pessoas estranhas entre si, bem como a prestação de serviços aos locatários, tais como limpeza ou refeições, entre outros, o que, aí sim, evidenciaria uma nítida finalidade comercial.
Para a Ministra Nancy Andrighi, o instrumento firmado via plataforma digital não representa um contrato de locação por temporada. Isso porque estes contratos celebrados através de plataformas digitais não observariam a totalidade das características da locação por temporada, como, por exemplo, a previsão expressa do parágrafo único do art. 48 da Lei de Locações, segundo o qual se exige que o contrato descreva os móveis e utensílios que guarnecem o local. Dessa forma, afirma que “a formalidade não é observada nos contratos firmados via aplicativos da internet, razão pela qual também não se está diante de um contrato de locação por temporada.” Diante disso, manifestou entendimento no sentido de se tratar de contrato atípico.
Portanto, até o presente momento, ainda não vislumbramos unanimidade na doutrina e na jurisprudência em relação à natureza jurídica destes contratos. É possível que essa indefinição leve a um receio de insegurança jurídica tanto em relação à legislação aplicável, como em relação à tributação incidente, e até mesmo em relação à destinação do empreendimento e possibilidade ou não de impedimento da celebração destes contratos nas respectivas convenções de condomínio. Não obstante, devemos lembrar que a discussão somente se refere aos contratos de curta duração (até 90 dias), não havendo dúvidas de que a contratação por longo período, ainda que através de plataforma digital, configura contrato de locação. Isto é, a utilização de aplicativos ou de plataforma digital não desconfigura a natureza do contrato. O que poderia impactar em sua configuração é sim a sua periodicidade e demais características, como o oferecimento de serviços complementares à locação.
Limitada a discussão para os casos de curta duração, ainda não há resposta definitiva para todos os questionamentos, sendo necessário o exame caso a caso. Por ora, é prudente considerar que a tendência dos Tribunais é a de entender que estes contratos celebrados por plataformas digitais são contratos atípicos mistos, ou seja, são contratos que englobam tanto características de locação por temporada como de hospedagem, não se aplicando a eles, por completo, nenhuma das legislações já existentes. Sendo assim, entendemos que, enquanto não há legislação específica, deve ser averiguado no caso concreto as características da relação em específico para fins de definição da natureza jurídica da contratação
Considerações finais
É manifesta a crescente expansão das proptechs no mercado imobiliário nacional, sobretudo na locação de imóveis prontos para morar. No presente estudo, buscamos analisar os principais aspectos dessa modalidade de contratação, explanando as vantagens e impactos para os locadores, locatários e incorporadoras.
A questão central, do ponto de vista jurídico, é determinar se esses contratos se enquadram na categoria de locação por temporada, hospedagem típica ou hospedagem atípica, e, consequentemente, qual legislação deve ser aplicada. Esse debate tem sido objeto de discussões na doutrina e jurisprudência, inclusive, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça.
Embora não haja unanimidade, com base na doutrina e nos dois acórdãos do STJ sobre o tema, a posição que vem se firmando é de enquadrar estes contratos por curto período, celebrados através das plataformas digitais, como contratos de “hospedagem atípica”, sobretudo quando envolvem uma alta rotatividade de inquilinos no imóvel e quando há serviços adicionais prestados, como limpeza, manutenção, lavanderia etc. No entanto, recomenda-se a avaliação do caso concreto, em suas peculiaridades, para a obtenção do seu enquadramento jurídico de forma segura.
- Terracotta Ventures. “Mapa das Construtechs e Proptechs do Brasil em 2023”. Disponível em: https://www.terracotta.ventures/ ↩︎
- Expert XP. “O que é uma startup? Definição, objetivos e como montar a sua!” Disponível em: https://conteudos.xpi.com.br. ↩︎
- Porto, Éderson Garin. Manual jurídico da startup: como desenvolver projetos inovadores com segurança. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018. p. 27. ↩︎
- Gerencial Comece com o pé direito. “Proptechs: como funcionam as startups do mercado imobiliário”. Disponível em: https://www.comececo mopedireito.com.br/blog/proptechs/ ↩︎
- Ibidem. ↩︎
- Neofeed. “A proptech que conecta incorporadoras, investidores e o Airbnb”. Disponível em: https://neofeed.com.br/blog/home/a-proptech-que-conecta-incorporadoras-investidores-e-o-airbnb ↩︎
- Estadão Blue Studio Express. “Startup alavanca as vendas do mercado imobiliário em Porto Alegre”. Disponível em: https://bluestudioexpress.estadao.com.br/conteudo/2022/07/26/mercado-imobiliario-em-
-porto-alegre/ ↩︎ - Lei nº 8.245/91, art. 48. Considera-se locação para temporada aquela destinada à residência temporária do locatário, para prática de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feitura de obras em seu imóvel, e outros fatos que decorrem tão-somente de determinado tempo, e contratada por prazo não superior a noventa dias, esteja ou não mobiliado o imóvel. ↩︎
- Venosa, Sílvio de Salvo. Lei do Inquilinato Comentada – Doutrina e Prática. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2021. p. 19-20. ↩︎
- Ibidem, p. 112. ↩︎
- Pereira, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. Atualizada por Sylvio Capanema de Souza e Melhim Namem Chalhub. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. ↩︎
- Scavone Jr., Luiz Antonio. Direito Imobiliário – Teoria e Prática. 16ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 1343. ↩︎
- REsp 1.819.075/RS, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, DJe de 27/5/2021. ↩︎
- REsp 1.884.483/PR, Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, DJe de 16/12/2021. ↩︎

