
A adesão do incorporador ao regime do patrimônio de afetação: o direito de retenção parcial dos valores pagas em caso de resolução contratual por inadimplemento do adquirente
O direito de retenção parcial dos valores pagos em caso de resolução contratual por inadimplemento do adquirente
Resumo
A adesão do incorporador ao regime do patrimônio de afetação é facultativa segundo a legislação vigente, embora a adesão ao regime por parte dos incorporadores tenha-se tornado praticamente obrigatória, por exigência das instituições financeiras. O artigo propõe, inicialmente, uma análise contextual da legislação sobre o tema. Em seguida, realiza-se um estudo sobre a adesão do incorporador ao regime do patrimônio de afetação, bem como sobre as formas e os requisitos para a sua extinção, conforme o entendimento jurisprudencial. Por fim, propõe-se, a partir do estudo de precedentes, uma análise sobre o direito de retenção, por parte das incorporadoras, do percentual de até 50% (cinquenta por cento) dos valores pagos, nos casos em que houver a resolução do contrato por inadimplemento do adquirente, nos termos da Lei nº 13.786/2018.
Introdução
O patrimônio de afetação, no âmbito das incorporações imobiliárias, foi concebido como um instrumento para assegurar a recomposição imediata do patrimônio dos adquirentes de unidades imobiliárias em construção, em caso de paralisação das obras. Ou seja, o patrimônio de afetação separa o terreno e os direitos a ele vinculados do patrimônio do incorporador, ficando destinado exclusivamente à incorporação, em proveito dos adquirentes.
Ao aderir ao regime do patrimônio de afetação, é dever do incorporador seguir rigorosamente todas as disposições legais atinentes ao instituto, fazendo com que todas as formalidades sejam cumpridas.
A observância da sistemática e as disposições relativas ao patrimônio de afetação ganharam ainda maior destaque a partir da Lei nº 13.786/2018, a qual prevê que, nas incorporações imobiliárias submetidas ao regime da afetação patrimonial, em caso de desfazimento contratual em virtude do inadimplemento do adquirente, o percentual de retenção poderá ser de até 50% das importâncias pagas, previsão esta que vem gerando intensa discussão nos Tribunais. O presente artigo pretende examinar a finalidade do patrimônio de afetação para, em seguida, incursionar sobre o direito de retenção em caso de resolução contratual por inadimplência do adquirente, à vista das recentes decisões jurisprudenciais sobre a matéria.
1. A indisponibilidade de bens imóveis: o seu conceito e sua extensão
Ao final da década de 90, o setor imobiliário vivia uma crise, diretamente relacionada com a falência de uma das maiores incorporadoras do país, a Encol, que “deixou centenas de empreendimentos imobiliários inacabados (cerca de 700) e mais de 40.000 famílias sem seu imóvel próprio”1. O instituto do patrimônio de afetação foi então concebido com a finalidade de estabelecer um novo marco protetivo à incorporação imobiliária.
Embora a Lei de Condomínios e Incorporações (Lei nº 4.591/1964) já trouxesse em seu bojo um sistema de proteção ao adquirente que adquiria imóveis na planta, ela ainda carecia de uma proteção patrimonial à incorporação. Para preencher esta lacuna, foi criado o instituto do patrimônio de afetação no âmbito das incorporações imobiliárias, introduzido pela Lei nº 10.931/2004.
Alguns doutrinadores afirmam que a teoria de afetação não é nova. Mauro Antônio Rocha, por exemplo, chama a atenção para o fato de que a teoria da afetação surgiu no final do século XIX, com o propósito de “quebrar a doutrina da unicidade patrimonial e permitir a criação de patrimônios especiais, separados do patrimônio comum para cumprir destinação específica”2. Ou seja, por uma questão de garantia de que patrimônios especiais cumpram diferentes finalidades, e em razão da necessidade de garantir a conclusão da obra, já se falava, há muito tempo, em modificar a doutrina da unicidade patrimonial, com o intuito de favorecer tanto os credores como os adquirentes.
A partir dessa mesma ideia fundamental, o patrimônio de afetação foi concebido e regrado, inicialmente, pela Medida Provisória nº 2.221/2001 a qual foi, três anos depois, convertida na Lei nº 10.391/2004. O seu objetivo principal é assegurar a recomposição imediata dos patrimônios dos adquirentes de unidades autônomas em construção, em caso de paralisação das obras. Em outras palavras, o patrimônio de afetação tem por finalidade a separação do terreno e dos direitos a ele vinculados do patrimônio do incorporador que, por opção deste último, “passa a ser destinado exclusivamente à consecução da própria incorporação em proveito dos futuros adquirentes”3. Neste sentido, o incorporador fica compelido a cumprir com todas as obrigações relacionadas – exclusivamente – à realização do empreendimento, passando a ter, inclusive, contabilidade própria, com a finalidade de assegurar aos compradores e demais credores uma relativa proteção contra a possibilidade do seu insucesso.
Uma vez que o incorporador tenha optado pelo regime do patrimônio de afetação, como afirma Jéverson Luís Bottega4, o terreno e as acessões, objeto da incorporação imobiliária, assim como os eventuais bens e direitos a ela vinculados, serão de imediato apartados do patrimônio do incorporador, constituindo-se em patrimônio de afetação. Tal patrimônio restará única e exclusivamente destinado ao pagamento das obrigações inerentes à incorporação, incluindo o pagamento do valor referente à aquisição do terreno, possibilitando a conclusão do empreendimento e a entrega das unidades aos adquirentes.
Frisa-se que a adesão ao regime de afetação patrimonial é facultativa. Por meio dela, o incorporador acaba por segregar todo o patrimônio referente à respectiva incorporação imobiliária atingida pelo regime, com a finalidade exclusiva de cumprir com todas as suas obrigações para com seus credores, a fim de concluir o empreendimento e entregar as unidades livres e desembaraçadas aos adquirentes. Embora legalmente facultativa, ao longo dos anos, a adesão ao regime da afetação se tornou quase que obrigatória para a obtenção de financiamento bancário para a construção do empreendimento.
Atualmente, além do objetivo de garantir a conclusão da obra da incorporação para a qual é instituído o patrimônio de afetação (e, por consequência, a entrega das unidades aos adquirentes), com o advento da Lei nº 13.786/2018, a chamada Lei dos Distratos, as incorporadoras passaram a fazer jus, com a opção pelo regime, à possibilidade de retenção de até 50% dos valores pagos por adquirentes que venham a dar causa a resolução dos contratos de aquisição das unidades imobiliárias de empreendimentos.

2. A adesão ao regime do patrimônio de afetação e a sua extinção
Conforme a Lei de Condomínios e Incorporações (Lei nº 4.591/64), em seu art. 31-B, o incorporador tem o direito de, a qualquer tempo, aderir ao regime do patrimônio de afetação, desde o registro da incorporação imobiliária até a conclusão da obra e desde que atendidas as exigências do respectivo Registro de Imóveis.
Cabe destacar que, já havendo financiamento imobiliário para a construção do empreendimento ou a venda de futuras unidades registradas na matrícula do imóvel, a instituição financeira e os adquirentes deverão anuir expressamente ao regime, assim constando do requerimento que será apresentado pelo incorporador ao Oficial do Registro de Imóveis competente.
Pode haver dúvida, por exemplo, sobre o impedimento de adesão ao regime em face da existência de direitos reais sobre o imóvel. Alguns doutrinadores, como Luiz Antônio Scavone Jr.5, discordam taxativamente sobre a possibilidade de tal impedimento, com base no que consta no parágrafo único do art. 31-B da Lei de Condomínios e Incorporações: “A averbação não será obstada pela existência de ônus reais que tenham sido constituídos sobre o imóvel objeto da incorporação para garantia do pagamento do preço de sua aquisição ou do cumprimento de obrigação de construir o empreendimento”. Como o patrimônio afetado visa garantir a conclusão do empreendimento, a sua constituição não pode ser obstada pelos titulares de direitos reais de garantia, em razão da aquisição, pelo incorporador, do terreno destinado à incorporação.6
7A adesão ao patrimônio de afetação pode dar-se a qualquer tempo, ou seja, inclusive após o registro da incorporação. Para que isso aconteça, além das anuências acima mencionadas (pela instituição financeira e adquirentes), deverá o incorporador estar atento ao prazo de validade da incorporação, que é de 180 (cento e oitenta) dias, a contar de seu registro, e caso tal prazo seja excedido, deve ele revalidar a incorporação, apresentando as certidões relacionadas no art. 32 da Lei nº 4.591/64. É possível que existam entendimentos diversos de registradores sobre a apresentação dos referidos documentos. Nesse sentido, será preciso considerar a interpretação específica de cada Ofício imobiliário.
Embora a Lei determine que se trata de uma faculdade do incorporador instituir ou não o patrimônio de afetação, existe a discussão sobre o fato de que tal mecanismo de proteção dependa da vontade, justamente, daquele contra o qual o instituto foi criado. Doutrinadores como Arnaldo Rizzardo8 e Melhim Chalhub9 convergem no entendimento de que todas as incorporações deveriam ser afetadas, independentemente da vontade do incorporador.
Ademais, indo ao encontro deste entendimento, ressalta-se a ocorrência de caso peculiar de adesão ao referido instituto no qual, diferentemente do que determina a lei, a adesão se deu por determinação judicial, em razão de pedido liminar realizado pelo Ministério Público. Trata-se de demanda na qual o Ministério Público ingressou com Ação Civil Pública em face da incorporadora e, uma vez entendendo haver risco evidente de insolvência e descumprimento por parte do incorporador com suas obrigações perante os adquirentes, requereu que fossem adotadas medidas de proteção, dentre as quais a cogente averbação do patrimônio de afetação, nos termos da decisão liminar proferida pelo juiz da referida ação.10
Diante da adesão ao patrimônio de afetação, é preciso considerar também as formas da sua extinção, que estão previstas no art. 31-E da Lei nº 4.591/1964. A primeira forma de extinção ocorre com o encerramento natural da incorporação imobiliária (art. 31-E, I), mediante os seguintes eventos cumulativos: (i) com a averbação da construção; (ii) o registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes; e, (iii) em caso de haver financiamento da obra, quando da extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento. No caso desta extinção natural e automática, é necessário que estejam presentes os três requisitos. Porém, caso estejam averbadas a conclusão das obras, bem como a quitação das obrigações do incorporador perante a instituição financeira que tenha financiado a obra, poderá o incorporador requerer a extinção do patrimônio de afetação, mesmo que ainda existam unidades registradas em seu nome.
As outras duas formas de extinção dão-se quando da revogação, em razão de denúncia da incorporação, depois de restituídas aos adquirentes as quantias por eles pagas, segundo o art. 36, Lei nº 4.591/64; ou quando da liquidação deliberada pela assembleia geral, nos termos do art. 31-F, § 1º (caso de decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador).
Outrossim, é importante mencionar uma questão que vem ganhando destaque, em decisões recentes, no Tribunal de Justiça de São Paulo. Enfrentando o tema, o Desembargador Claudio Godoy afirmou que a averbação da construção, por si só, seria suficiente para extinguir o patrimônio de afetação – invalidando as cláusulas que preveem a retenção de 50% dos valores pagos11. O argumento utilizado na decisão foi o de que, com a entrega das unidades e a averbação da construção, automaticamente ocorreria a extinção do patrimônio de afetação, tornando nula a cláusula de retenção de 50%, com base no art. 67-A, §5º. No entanto, esta orientação não se mostra razoável, uma vez que o incorporador pode ainda não ter cumprido com outras obrigações, como, por exemplo, a quitação do financiamento contratado junto à instituição financeira, visando a execução da obra do empreendimento afetado.
Em contrapartida, há decisões que defendem a interpretação de que, para extinguir o patrimônio de afetação, todos os requisitos legais devem ser cumpridos, incluindo, dentre estes, a quitação das obrigações junto ao agente financiador da obra. Estas decisões destacam que a mera conclusão das obras não é suficiente para liberar o bem de sua afetação: é necessário comprovar-se o cumprimento de todos os demais requisitos.12
Embora algumas decisões, como se viu, tenham sugerido que a simples averbação da construção seria suficiente para extinguir o patrimônio de afetação, é absolutamente defensável considerar que outros compromissos legais podem não ter sido integralmente cumpridos pelo incorporador, como a quitação de financiamentos junto a instituições financeiras, por exemplo.
Seguir estritamente todos os requisitos legais é a forma de assegurar a mais ampla proteção tanto dos compradores quanto dos incorporadores, inclusive com a preservação das condições contratuais originalmente estipuladas. Assim, a exigência de cumprimento de todos os requisitos legais para a extinção do patrimônio de afetação não apenas respeita o princípio da segurança jurídica, mas também promove um ambiente mais transparente para todas as partes envolvidas no âmbito da incorporação imobiliária.

3. O direito de retenção parcial de valores pagos em caso de resolução contratual por inadimplemento do adquirente
A Lei nº 13.786/2018, também chamada Lei dos Distratos, estabeleceu regras claras para a resolução de contratos de compra e venda de imóvel, promessa de compra e venda, cessão ou promessa de cessão de unidades no âmbito da incorporação imobiliária, introduzindo medidas destinadas a equilibrar as relações entre adquirentes consumidores e incorporadoras durante a fase de construção dos empreendimentos.
Merece destaque o art. 67-A da Lei dos Distratos, segundo o qual, em caso de distrato ou resolução contratual por inadimplemento do adquirente, este fará jus à restituição das quantias pagas, atualizadas com base no índice contratualmente estabelecido, deduzindo-se, cumulativamente, a integralidade da comissão de corretagem e a pena convencional, que, em regra, pode ser estabelecida em até 25% das importâncias pagas.
Este percentual, todavia, pode ser aumentado, no caso de o incorporador ter aderido ao regime do patrimônio de afetação. Como determina o §5º do art. 67-A, quando a incorporação estiver submetida a este regime, admite-se que a pena convencional seja estabelecida até o limite de 50% (cinquenta por cento) das quantias pagas. Nesse sentido, caso se torne inadimplente o comprador de unidade imobiliária cuja incorporação esteja submetida ao regimente de afetação, a multa de até 25% poderá ser estendida em até 50%, se assim estiver previsto no contrato.
Ainda que o promitente comprador alegue a ausência de prejuízo à construtora ou a abusividade da referida retenção, tais alegações não têm, em tese, condão para que a multa seja reduzida. Isso porque, conforme disposto no §1º, do art. 67-A, da lei supramencionada: “para exigir a pena convencional, não é necessário que o incorporador alegue prejuízo”.
Sublinhe-se que os desfazimentos de contratos, por culpa do promitente comprador, geralmente resultam no desequilíbrio econômico-financeiro do empreendimento como um todo, de modo que a integralidade dos demais adquirentes, que continua a honrar com seus compromissos, sofrerá as consequências dessa perda, uma vez que as receitas provenientes das vendas integram o conjunto de bens do patrimônio afetado. Em outras palavras, a resolução contratual decorrente do inadimplemento de determinado adquirente termina por refletir negativamente nos demais adquirentes de unidades do empreendimento, visto que lhe subtrai receitas. Por isso, o objetivo do legislador, ao criar as referidas especificidades da incorporação imobiliária e do patrimônio de afetação, foi a proteção da coletividade dos adquirentes e do próprio cumprimento do contrato de compra e venda das unidades habitacionais.
Não obstante, tem sido questionada na seara judicial a extensão do percentual de retenção dos valores pagos pelos adquirentes nos casos de incorporações imobiliárias submetidas ao patrimônio de afetação. Vejamos dois exemplos.
Em recente decisão de primeira instância na Comarca de Porto Alegre, o juiz singular acolheu o pleito de redução do percentual de retenção, utilizando-se, como fundamentação, do art. 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor13, considerando que o consumidor teve uma desvantagem na estipulação da cláusula contratual, incompatível com a boa-fé. Note-se que, apesar da existência de uma lei específica sobre o assunto, o magistrado optou, neste caso, por subscrever a tese da aplicação do CDC, no sentido de que a retenção de 50% dos valores pagos pelo comprador seria excessiva, não obstante a decisão tenha expressamente reconhecido o fato de que a rescisão ocorreu por culpa do comprador, e que o contrato estipulava claramente o percentual de retenção a ser aplicado.
Em outro processo, em grau de recurso apelativo, a 17ª Câmara Cível do TJRS14, enfrentando a mesma matéria, mencionou explicitamente que o contrato fora celebrado posteriormente à vigência da Lei nº 13.786/2018, tratando-se de uma incorporação sujeita ao regime de patrimônio de afetação. No entanto, a decisão do órgão colegiado enfatizou que o percentual de retenção só poderia ser aceito, mesmo com respaldo legal, se houvesse uma justificativa adequada por parte do incorporador, considerando os princípios da razoabilidade e proporcionalidade. No caso em questão, o comprador havia pago menos de 1/3 do preço total do imóvel e a obra já estava praticamente concluída na data em que o processo foi iniciado, o que facilitaria, em tese, a sua revenda pelo incorporador.
Nestes dois casos citados, observa-se que, mesmo que o contrato tenha estipulado a aplicação do percentual de 50%, conforme previsto na Lei nº 13.768/2018, as decisões apoiaram-se no Código de Defesa do Consumidor.
No entanto, tais entendimentos vão contra o princípio da especialidade, segundo o qual a norma especial deverá prevalecer sobre norma geral, sendo esta uma situação de antinomia normativa aparente15. Ademais, a aplicação do chamado princípio da especialidade em casos de compra e venda de imóvel, frente ao CDC, foi prestigiada pelo STJ no Tema Repetitivo nº 1.095, oriundo do REsp Repetitivo nº 1.891.498/SP, segundo o qual: “Em contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado em cartório, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor, devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na Lei nº 9.514/97, por se tratar de legislação específica, afastando-se, por conseguinte, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor”.16
Em que pese a existência de julgados em primeira e segunda instância em sentido diverso, a validade de cláusula penal de retenção de até 50% das quantias pagas pelo adquirente tem sido validada pelo STJ, tal como fica claro no posicionamento da Ministra Maria Isabel Gallotti: “[…] a intervenção estatal, com o exacerbamento na proteção conferida aos compradores de imóveis, não pode servir de desestímulo à construção civil, o que certamente redundaria em um contexto desfavorável ao consumidor, com o aparecimento de dificuldades no acesso ao almejado bem. A proteção do interesse dos consumidores, portanto, deve ser exercida de forma equilibrada, sem descurar da coletividade, o que ensejará a sustentabilidade e a estabilidade entre os interesses envolvidos na incorporação imobiliária”.17
No mesmo sentido, destaca-se o voto do Ministro Luis Felipe Salomão, em caso no qual o percentual fora estabelecido até o limite de 50%: “Estando o limite estabelecido na cláusula de devolução de valores pactuada entre as partes em conformidade com o estabelecido na lei, não há como declarar sua nulidade, ante a prevalência do princípio da pacta sunt servanda”18.
Mais recentemente, em Recurso Especial julgado em abril de 2023, o Min. Raul Araújo concluiu no mesmo sentido, esclarecendo que, estando a cláusula penal pactuada entre as partes em consonância com a regra contida no art. 67-A, §5º, da Lei dos Distratos, não há como reputá-la nula. “A retenção em questão pode ser estabelecida até o teto de 50% da quantia paga, quando a incorporação estiver submetida ao regime do patrimônio de afetação (…). Destarte, encontrando-se o limite previsto na cláusula de devolução de valores pactuada entre as partes em consonância com o contido na lei, não há como reconhecer sua nulidade, ante a primazia do princípio da pacta sunt servanda”.19
Entender de forma contrária, reduzindo a cláusula convencional de perdimento de 50% para qualquer outro patamar, equivaleria, portanto, a contrariar o que ficou estipulado entre as partes (pacta sunt servanda), bem como a norma legal (art. 67-A, §5º, II, da Lei 13.768/2018) e, ainda, a primazia do interesse da coletividade.
Considerações finais
Ao instituir o patrimônio de afetação, é dever do incorporador seguir rigorosamente todas as suas disposições, especialmente considerando a crescente atenção que os Tribunais têm dado a este aspecto. Igualmente, ao buscar a extinção do patrimônio de afetação, é preciso certificar-se de que todas as formalidades tenham sido estritamente observadas. Tais disposições ganharam ainda maior relevo a partir da Lei nº 13.786/2018 e das discussões nos Tribunais acerca do especial tratamento conferido às incorporações submetidas ao patrimônio de afetação.
Na compra e venda de imóvel ou unidade imobiliária, é fundamental que ambas as partes na relação sejam protegidas em seus direitos, evitando assim desequilíbrios ou vantagens injustas nas relações contratuais. No âmbito da incorporação imobiliária, em especial, importa sobretudo que a proteção observe a perspectiva da coletividade, e não meramente da individualidade de cada um dos adquirentes. Essa observação é crucial, ao efeito de que seja prestigiado o microssistema de proteção da incorporação imobiliária.
Embora o tema da retenção pelo incorporador de até 50% dos valores pagos, em caso de resolução por inadimplemento do promitente comprador, esteja sendo objeto de intensos debates jurídicos, espera-se que o Superior Tribunal de Justiça mantenha o seu posicionamento atual, em favor da validade da cláusula, eventualmente, por meio da abertura e julgamento de incidente de recursos repetitivos.
- Paiva, João Pedro Lamana. Procedimento de dúvida no Registro de Imóveis. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 184. ↩︎
- Rocha, Mauro Antônio. “O regime da afetação patrimonial na incorporação imobiliária – uma visão crítica da lei”. Revista de Direito Imobiliário, v.59, 2005, p. 153. ↩︎
- Scavone Jr., Luiz Antônio. Direito imobiliário – teoria e prática. Rio de Janeiro: Nacional, 2012, p. 133. ↩︎
- Bottega, Jéverson Luís. Incorporação imobiliária e a responsabilidade civil do incorporador. Porto Alegre: Norton, 2005, p. 57. ↩︎
- Scavone Jr., Luiz Antônio. Direito imobiliário – teoria e prática, op. cit., p. 135. ↩︎
- Ibidem. ↩︎
- Nas diferentes Zonas do Registro de Imóveis de Porto Alegre, por exemplo, verifica-se que, devido aos distintos entendimentos de cada Oficial registrador, salvo pelo requerimento, requisito básico para ingresso, é possível a exigência de apresentação de algumas certidões da incorporadora exigidas no art. 32 da Lei nº 4.591 de 1964 para a adesão ao instituto do patrimônio de afetação, quando feito posteriormente ao registro da incorporação imobiliária, independente de esta configurar-se dentro do prazo de validade de 180 (cento e oitenta) dias. ↩︎
- Rizzardo, Arnaldo. Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 413. ↩︎
- Chalhub, Melhim Namem. Da Incorporação Imobiliária. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, p. 60 ↩︎
- São José, SC. Processo nº 0904366-89.2018.8.24.0064. Autor: Ministério Público do Estado de Santa Catarina. Ré: Ária Construtora e Incorporadora Ltda. e outros. Juiz: Otávio José Minatto. Decisão liminar
prolatada em 16 de novembro de 2018. ↩︎ - TJSP, Apelação nº 1024643-54.2021.8.26.007, 1ª Câmara de Direito Privado. Relator Des. Claudio Godoy, julgado em 06/02/2023. ↩︎
- TJSP, Agravo de Instrumento nº 2287505-50.2019.8.26.0000, 33ª Câmara de Direito Privado, Relatora Desa. Ana Lucia Romanhole Martucci, julgado em 25/09/2020; TJSP, Agravo de Instrumento nº 052507-
11.2017.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Realtor Des. Claudio Godoy, julgado em 27/11/2017. ↩︎ - Porto Alegre. Foro Central. Processo nº 5012611-87.2022.8.21.3001. Juíza Fabiana dos Santos Kaspary. Decisão prolatada em 3.07.2023. ↩︎
- TJRS, Apelação Cível nº 5028849-63.2022.8.21.0001, 17ª Câmara Cível, Relatora Desa. Rosana Broglio Garbin, julgado em 10.08.2023. ↩︎
- Tartuce, Flávio. Manual de Direito Civil: Volume Único. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 33-4. ↩︎
- STJ, REsp nº 1.891.498, Relator Min. Marco Buzzi, DJe 19.12.2022. ↩︎
- Voto da Min. Maria Isabel Gallotti no REsp 1.614.721, DJe 22.05.2019. ↩︎
- STJ, AREsp nº 2.062.928, Relator Min. Luis Felipe Salomão em Decisão Monocrática, DJe 04.04.2022. ↩︎
- STJ, REsp nº 2.055.691, 4ª Turma, Relator Min. Raul Araújo, DJe 03.04.2023. ↩︎
