
Análise dos pontos-chave da recente revisão do Plano Diretor e da Lei de Zoneamento da cidade de São Paulo
Resumo
As revisões periódicas dos instrumentos urbanísticos são fundamentais para a sintonia entre a legislação municipal e a vida das cidades. Na cidade de São Paulo, recentemente, foram revisados o Plano Diretor e a Lei de Zoneamento, com ênfase em temas como o deslocamento urbano, o regramento das vagas de garagem, os incentivos para o desenvolvimento imobiliário, o regramento das Habitações de Interesse Social, a criação de instrumentos para a desapropriação de imóveis não edificados, subutilizados ou não utilizados. A fim de analisar os pontos-chave destas revisões, propõe-se uma reflexão introdutória e contextualizadora sobre a função urbanística do Plano Diretor e da Lei de Zoneamento enquanto instrumentos legislativos para a regulação do ordenamento urbanístico das cidades. Em seguida, realiza-se uma análise crítica sobre os principais pontos-chave de alterações introduzidas no Plano Diretor e na Lei de Zoneamento da cidade de São Paulo.
Introdução
As cidades são comos ecossistemas complexos e orgânicos, onde a interação entre pessoas, espaços públicos dinâmicos e diversidade de usos, são fundamentais para criar lugares habitáveis, vibrantes e seguros1. Por essa razão, as mudanças e revisões dos instrumentos urbanísticos são tão fundamentais, pois elas devem refletir as necessidades daquele local específico, não existindo modelo para isso, pois cada cidade (e às vezes cada bairro) tem, para a sua realidade e demanda, naquele momento, as suas próprias estratégias e soluções.
O Plano Diretor e a Lei de Zoneamento são as legislações consideradas como as mais importantes dentro do contexto de expansão urbana. É justamente através destes instrumentos que é possível entender para onde determinada cidade deseja crescer, quais são os seus principais problemas e quais são as possíveis soluções e estratégias propostas.
No presente artigo, trataremos, especificamente, dos pontos de maior destaque nas revisões do Plano Diretor e da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (também chamada Lei de Zoneamento) da cidade São Paulo. Como muito tempo passou ao longo dos trâmites legislativos, os desafios das referidas revisões foram ainda maiores, considerando-se as significativas mudanças de hábito ocorridas nestes últimos anos, as quais refletiram diretamente no funcionamento da cidade de São Paulo, acompanhadas, ainda, de um desenvolvimento imobiliário em alta escala (o maior em pelo menos 30 anos).
A Prefeitura de São Paulo contou com um processo de aprovação amplo, com mais de 25.000 participantes, 10.000 contribuições e mais de 60 audiências públicas, o que impactou diretamente no texto que foi aprovado. Obviamente, houve também participação ativa do Poderes Executivo e Legislativo.
Referidas mudanças, em grande parte, refletem as necessidades e demandas dos cidadãos da capital paulista, razão pela qual, como se verá neste artigo, o foco, principalmente o do Plano Diretor, foi, justamente, a mobilidade, visando promover um desafogamento do trânsito, incentivando-se a utilização de transportes públicos e meios alternativos de deslocamento.
Ditas mudanças acabam também por impulsionar o desenvolvimento imobiliário, na medida em que trazem diversos incentivos para imóveis localizados próximos aos chamados eixos de estruturação/eixos de influência, possibilitando um coeficiente de aproveitamento maior do que era permitido anteriormente, além da concessão de benefícios urbanísticos para empreendimentos de uso misto. Estas alterações, como se verá adiante, têm o condão de impactar positivamente a caminhabilidade e a vida nos bairros, principalmente quando contemplarem calçadas mais largas, o que também foi incentivado nas alterações ao Plano.
Outro ponto bastante significativo diz respeito às tentativas de resolver o grande problema relacionado à moradia digna para as pessoas de baixa renda, o que tem sido um desafio cada vez maior na cidade de São Paulo.
Nesse sentido, o artigo propõe, inicialmente, uma reflexão sobre análise da função urbanística do Plano Diretor e da Lei de Zoneamento como instrumentos legislativos para a regulação do ordenamento urbanístico das cidades. Em seguida, realiza-se uma análise crítica sobre os principais pontos-chave de alterações introduzidas no Plano Diretor e na Lei de Zoneamento da cidade de São Paulo.
1. A função urbanística do Plano Diretor e da Lei de Zoneamento
Na base da lógica constitucional que atribui aos municípios a obrigação de estabelecer e executar o correto ordenamento territorial, encontra-se a competência estabelecida no art. 30, VIII, da CF, de “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”. Tanto a regulação do planejamento como o controle do uso, parcelamento e ocupação ocorrem por lei municipal. A lei municipal que prevê as diretrizes básicas sobre o planejamento e a expansão urbana é o plano diretor. Em muitos casos, é já este o instrumento que prevê as regras sobre zoneamento. Porém, também é possível que o município opte pela aprovação de uma lei específica para tratar do zoneamento, como é o caso de São Paulo.
O Plano Diretor é um instrumento obrigatório para todas as cidades do Brasil com mais de 20.000 habitantes, de acordo com o art. 182, §1º, da Constituição Federal, cujo intuito político básico é o de fornecer as diretrizes para o desenvolvimento e a expansão urbana. De acordo com José Afonso da Silva, é plano, “porque estabelece os objetivos a serem atingidos, o prazo em que estes devem ser alcançados (ainda que, sendo plano geral, não precise fixar prazo, no que tange às diretrizes básicas), as atividades a serem executadas e quem deve executá-las”; assim como é diretor, “porque fixa as diretrizes do desenvolvimento urbano do Município”.2
Tendo em vista a dinâmica pulsante de uma cidade e o comportamento da sociedade sempre em evolução, é esperado que o plano diretor tenha de ser revisado de modo periódico. É por esta razão que o art. 40, §3º, da Lei nº 10.257/01, (Estatudo da Cidade), estabelece a regra de que o Plano Diretor deva ser revisado a cada década.
A ordenação do uso e a ocupação do solo é um dos aspectos fundamentais do planejamento urbanístico das cidades, a qual preconiza uma “estrutura orgânica para as cidades (…) com o quê se procura obter uma desejável e adequada densidade populacional e das edificações nos aglomerados urbanos.”3 Entre as diversas regras sobre o solo a serem previstas pelo município, as regras de ocupação tratam do modelo de assentamento urbano, enquanto as regras de uso são, normalmente, voltadas para o controle de densidade (conforme a população, localização, dimensão e volume das edificações). Neste sentido, o zoneamento é a técnica urbanística de regramento do uso do solo em um determinado município, com a qual se estabelece uma divisão do território em diversas áreas, considerando as zonas urbanas, as zonas urbanizáveis, as zonas de expansão urbana e a zona rural, incluindo a classificação em conformidade com suas características e finalidades básicas (residencial, comercial, de serviços, institucional, industrial, entre outras).4
Tanto o planejamento urbano como as regras de uso do solo auxiliam no crescimento ordenado e sustentável de uma metrópole, assegurando o bem-estar dos cidadãos que nela habitam e/ou circulam. Nesse sentido, o Plano Diretor e a legislação municipal que trata do zoneamento urbano têm o condão de impactar positivamente na vida da cidade, já que elaborados com um olhar para os hábitos e particularidades locais, assim como observando as tendências do urbanismo como um todo. Estes instrumentos proporcionam diretrizes coerentes para: o bom ordenamento urbano; a promoção da qualidade de vida; a preservação ambiental; a valorização imobiliária; a mobilidade urbana; e a equidade social.
Na cidade de São Paulo, tanto o Plano Diretor quanto a Lei de Zoneamento foram recentemente alterados, gerando diversas polêmicas. Exemplificativamente, uma delas foi sobre a verticalização e o adensamento: parte da população não queria ver seu bairro com características alteradas. Outra questão bastante debatida girou em torno da ampliação das Zonas Especiais de Interesse. Também neste caso, discutiu-se sobre o fato de que certos bairros passariam a fazer parte de zonas em que programas de moradia popular seriam implementados. Ademais, foi discutida a questão da cota de solidariedade. Sobre este tópico, setores da indústria imobiliária alegaram que tal subsídio poderia impactar negativamente na viabilidade econômica de novos projetos. Todas estas polêmicas são reflexos da complexa gestão urbana de uma megacidade, onde se faz necessário equalizar o crescimento econômico com a promoção da equidade social, sustentabilidade e qualidade de vida dos cidadãos.
2.0 Pontos-chave da revisão do Plano Diretor da cidade de São Paulo
Em julho de 2023, o Plano Diretor da cidade de São Paulo foi alvo de mudanças, tendo sido aprovada e sancionada a sua revisão intermediária pela Lei Municipal nº 17.975/2023. Vale ressaltar que, como consta na revisão do Plano Diretor, os seus objetivos devem ser alcançados até o ano de 2029, oportunidade em que este será renovado, conforme dispõe o art. 1º da referida legislação municipal.
De fato, esclarecemos que não foi criado um “novo” Plano Diretor para a cidade de São Paulo. O que ocorreu foi a revisão do Plano Diretor em pontos-chave como: fachadas ativas, habitação social, cota de solidariedade, função social da propriedade e, principalmente, a revisão dos eixos de estruturação/influência, questão esta vinculada a um dos maiores problemas da capital paulista: o deslocamento.
De maneira geral, um dos principais objetivos da revisão foi a tentativa de amenizar o grande problema vinculado ao trânsito caótico da cidade, com o incentivo a uma maior verticalização nas proximidades das maiores vias de circulação e linhas de metrô/trem e dos terminais de ônibus, com vistas a um maior adensamento populacional nessas zonas, diminuindo a necessidade de deslocamento com automóvel e privilegiando o transporte coletivo. É a partir dessa questão central que se abriram vários pontos de revisão no Plano Diretor de São Paulo, conforme passamos a analisar.
2.1. Eixos de Estruturação
Vejamos mais precisamente como se deu o incentivo legislativo à verticalização em zonas próximas a meios de transporte público. De acordo com as alíneas “a” e “b” do art. 77 do Plano Diretor de São Paulo, as zonas dentro de um raio de 700m de estações de metrô e trem (anteriormente à revisão esse raio era de 600m) e de 400m de corredores de ônibus (anteriormente à revisão esse raio era de 300m), podem abrigar empreendimentos sem limite de altura.
Ademais, o coeficiente de aproveitamento máximo das zonas que se encontram dentro dos raios supramencionados passaram a ser de a até quatro vezes o tamanho do terreno, conforme previsto na alínea “a”, do §7, do art. 76 do Plano Diretor de São Paulo. No entanto, toda vez que for utilizado para construção um potencial construtivo acima de 01 (uma) vez o tamanho do terreno, será necessária a compra, pelo incorporador, de outorga onerosa junto ao município (o que, via de regra, costuma ocorrer).
Veja-se, conforme a ilustração abaixo5, que as quadras compreendidas pelo aumento do raio são todas aquelas que são “tocadas” por dito aumento. Ou seja, uma quadra não precisa estar inteiramente dentro do raio “para se beneficiar” dos incentivos trazidos pela revisão do Plano.

Um ponto que ocasionou divergências foi que o aumento da abrangência do raio nas zonas próximas ao transporte público “invadiria excessivamente o miolo dos bairros”6. Contudo, conforme o arquiteto e urbanista Anthony Ling, tal cenário apenas ocorreria em determinadas localidades como, por exemplo, no “centro expandido, onde há maior densidade da malha de transporte, ou seja, onde a infraestrutura é de fato mais abundante – e onde a demanda por localização é, de fato, maior, necessitando uma resposta de maior oferta de espaço construído”7, não gerando, portanto, um ônus ao chamados “miolos de bairro” como muitas associações de moradores/bairros alegaram, em virtude da possibilidade de descaracterização de determinados bairros.
Interessante pontuar também que o objetivo do aumento da abrangência do raio é, certamente, o de aumentar o adensamento populacional nessas zonas, gerando, com isso, uma maior utilização do transporte público. Todavia, um contraponto a esta medida pode ser encontrado em uma pesquisa apresentada por Priscila Mengue,8 segundo a qual grande parte dos empreendimentos lançados nos chamados “eixos de estruturação” são destinados a “população de maior renda” ou para locação temporária, ou seja, destinados a pessoas que muitas vezes não utilizam o transporte público no dia a dia.
Não obstante as diferentes opiniões sobre essa mudança no Plano Diretor, o certo é que ela implica na potencialização de diversos terrenos que, anteriormente, eram considerados inviáveis para novos empreendimentos. Referidos imóveis, após a mudança legislativa, tiveram significativa valorização, sendo atualmente disputados por incorporadoras e investidores imobiliários.
2.2. Qualificação urbana para os Eixos
Outro aspecto que merece destaque na revisão do Plano Diretor da cidade de São Paulo são os seus incentivos urbanísticos, cujo intuito é conferir qualidade urbana para as zonas chamadas de “Eixos”. Todos os incentivos que são destacados a seguir têm como objetivo aumentar a caminhabilidade da cidade, tornando-a mais agradável aos pedestres e com espaços públicos mais humanizados.
O primeiro item a ser destacado são as fachadas ativas, ou seja, fachadas que trazem, no térreo dos empreendimentos, lojas e/ou restaurantes, o que incentiva a comunicação entre o empreendimento e o bairro, estimulando o comércio local e fazendo com que as pessoas encontrem comércio próximo às suas residências. Neste sentido, a revisão estabeleceu que a área de até 50% destinada à fachada ativa, sempre que de uso não residencial, não será computada para fins do coeficiente de aproveitamento, conforme previsto no art. 80, inciso IV, do Plano Diretor de São Paulo/SP. Ou seja, para a construção dessas lojas, o incorporador passa a ter um custo baixo de outorga onerosa, incentivando-o, portanto, a criar tais espaços nos empreendimentos.
As lojas instaladas em fachadas ativas, para contar com o incentivo vinculado ao cálculo do coeficiente de aproveitamento, deverão ter uma testada (frente) maior do que 20m, bem como localizar-se no nível da rua, com acesso direto à calçada (também de acordo com o art. 80, inciso IV, do Plano Diretor de São Paulo).
As fachadas ativas, além de estimular a caminhabilidade, acabam por desincentivar as vagas de garagens, vez que as primeiras, por vezes, ocupam o espaço que poderia ser destinado justamente aos automóveis. Tal desincentivo foi objeto das alterações da Lei de Zoneamento da Capital Paulista, conforme veremos a seguir.
Outro item, foi a ampliação das calçadas, dos espaços livres, das áreas verdes e permeáveis dos lotes. É fato conhecido que a capital paulista possui calçadas extremamente estreitas, dificultando o deslocamento dos pedestres. Além disso, também a cidade é conhecida pela predominância de prédios em relação às áreas verdes. Por essas razões, a revisão do plano determinou que a largura mínima das calçadas passa a ser de cinco metros nos imóveis com frente para os eixos de estruturação e no mínimo de três metros para os demais. O incentivo aos incorporadores no caso da ampliação das calçadas é que, como contrapartida à doação necessária para a realização da referida ampliação, o recuo da frente será dispensado; o potencial construtivo será calculado em função da área original, e não será cobrada a outorga onerosa correspondente à área doada. Os dispositivos referentes à questão da ampliação de calçadas e ao respectivo incentivo estão previstos no art. 79, §7º e §8º, do Plano Diretor de São Paulo.
Salientamos, ainda, o incentivo relacionado à fruição pública, previsto no art. 82-A e respectivos incisos do Plano Diretor de São Paulo. Área de fruição pública é a área do empreendimento que pode ser aproveitada pela população em geral. No caso deste incentivo, haverá gratuidade de 50% do potencial construtivo máximo utilizado para áreas destinadas a este tipo de finalidade. Além disso, o cálculo do potencial construtivo será em função da área original do lote, sendo necessário: i) área destinada à fruição pública de no mínimo 250 m2; e, ii) área localizada junto ao alinhamento viário, no nível da calçada e permanentemente aberta.
2.3. Qualificação urbana para os Eixos
Destaca-se, igualmente, a política de habitação social destinada para promover a produção de moradias acessíveis para a população de baixa renda na cidade de São Paulo. Com a revisão, o Plano Diretor traçou objetivos e diretrizes bastante claros em seu art. 291, quais sejam: (i) reduzir o déficit habitacional; (ii) assegurar o direito à moradia digna; (iii) reduzir impactos de assentamentos em áreas ambientais; e, (iv) reduzir moradias inadequadas .
Uma das novas formas encontradas para fornecer (de modo, senão imediato, ao menos, bastante rápido) acesso à moradia digna para as pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica foi possibilitar a chamada locação social, a qual permite que pessoas sem condições de adquirir um imóvel possam locar uma moradia digna. Os imóveis destinados a esta modalidade de locação podem ser oriundos da reabilitação de edifícios vazios ou subutilizados em áreas centrais (art. 292, VII); do Serviço de Moradia Social, com a constituição de parque imobiliário público (art. 296, II); da execução de programas e projetos de habitacionais de interesse social (art. 339, I).
Ainda, é importante mencionar que, mesmo quando esses imóveis destinados à HIS forem vendidos, permanece a obrigação de destiná-los às faixas de renda HIS-1 ou HIS-2, conforme o previsto no art. 46, mantendo-se, portanto, o perfil originalmente definido.
2.4. Qualificação urbana para os Eixos
A cota de solidariedade é um mecanismo que auxilia e fortalece a Habitação de Interesse Social (HIS). Neste sentido, a revisão do Plano Diretor procurou responder à necessidade urgente de moradia adequada e bem localizada (perto das oportunidades de emprego e equipamentos sociais). A duplicação da área demarcada como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS)9 reflete um compromisso significativo do Poder Público com a produção de moradia social, especialmente para a população com renda de até três salários mínimos.
Conforme o art. 112 do Plano Diretor de São Paulo, para que empreendimentos de grande porte (mais de 20.000m2 de área construída) ou causadores de impacto urbano recebam o certificado de conclusão, estes precisam doar 10% (dez por cento) de sua área construída computável para a produção de moradia popular (HIS), a qual, para esta destinação, será considerada não computável (cf. §1º do art. 112). Alternativamente, no §2º do art. 112, restou prevista a possibilidade de substituir tal obrigação (i) pela construção de Habitação de Interesse Social de equivalente metragem em outro terreno; (ii) pela doação de terreno de valor equivalente a 10% do terreno do empreendimento; ou (iii) depositar no Fundo de Desenvolvimento Urbano – FUNDURB, em sua conta segregada para Habitação de Interesse Social, 10% (dez por cento) do valor da área total do terreno.
Essa medida faz com que o programa de moradia popular (HIS) seja constantemente (sempre que haja grandes empreendimentos) alimentado com fundos da iniciativa privada, a fim de auxiliar no equilíbrio do desenvolvimento urbano e econômico-social, incluindo aqueles que mais precisam de habitação.
A seguir, apresentamos uma ilustração10 acerca das opções que o incorporador detém, sempre que construir
empreendimentos de grande porte:

2.5. Imóveis não edificados, subutilizados ou não utilizados
Outro aspecto que consideramos ser um ponto-chave no contexto da revisão do Plano Diretor de São Paulo é o da aplicação de instrumentos indutores do princípio da função social da propriedade para a classificação dos imovéis.
Conforme os arts. 91 a 95 do Plano Diretor da cidade de São Paulo, os imóveis que não cumprem devidamente a sua função social, segundo suas diretrizes, foram classificados em três tipos: 1) imóveis não edificados; 2) imóveis subutilizados; e 3) imóveis não utilizados. Os proprietários desses imóveis devem tomar providências em relação a tais situações, sob pena de a Prefeitura realizar a sua desapropriação mediante pagamento com títulos da dívida pública.
Na hipótese de que o proprietário não cumpra com as obrigações e prazos previstos, a Prefeitura passará a cobrar IPTU Progressivo no Tempo e, após cinco anos de cobrança, ela poderá realizar a sua desapropriação, observado o disposto nos arts. 98 e 99 do Plano Diretor de São Paulo.
Examinados os pontos-chave de mudança do Plano Diretor da cidade de São Paulo, passaremos a analisar as alterações realizadas na Lei de Zoneamento, a qual complementa as suas disposições.

3. Pontos-chave da revisão da Lei de Zoneamento da cidade São Paulo
Não obstante o zoneamento seja uma técnica de legislação urbanística comumente utilizada, é fato que este pode conter alguns conceitos ultrapassados, especialmente quando se torna demasiadamente restritivo, falhando em contemplar os reais interesses das pessoas que vivem, circulam, trabalham em determinado local.
Ao encontro de uma solução para esta problemática, o Plano Diretor da cidade de São Paulo, desde as suas últimas alterações, vem incentivando os usos mistos nos térreos dos empreendimentos, concedendo benefícios aos incorporadores cujos projetos incluam fachadas ativas. É neste ponto que a ponderação acerca do zoneamento se mostra relevante, a partir da revisão parcial da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (Lei Municipal nº 16.402/2016), realizada pela Lei Municipal nº 18.081/2024.
3.1. Vagas de garagem
Um primeiro aspecto referente às alterações realizadas na Lei de Zoneamento é o que trata da regulamentação das vagas de garagem. Nesse sentido, houve uma redução da obrigatoriedade de vagas, pois, em muitas áreas da cidade, especialmente aquelas próximas a eixos de transporte público (corredores de ônibus e estações de metrô), a exigência mínima de vagas de garagem foi reduzida ou até eliminada, visando desestimular o uso excessivo de automóveis e incentivar o uso do transporte público.
Somente unidades com mais de 30m2 terão direito à vaga de garagem, conforme previsto na alínea “a” do art. 62 da Lei de Zoneamento. Além disso, foram estabelecidos novos limites de vagas para apartamentos maiores: é concedido o direito de uma vaga de garagem para cada 60m2, de acordo com o previsto na alínea “b” do mesmo dispositivo.
3.2. Vagas de garagem
Outro ponto a destacar é o previsto no inciso V, do art. 91, da Lei de Zoneamento, no qual foi incluída a possibilidade de construção de prédios com maior gabarito e com coeficiente de aproveitamento majorado em 50% nos imóveis localizados na Avenida Rebouças e Avenida Eusébio Matoso. Ademais, um trecho da Avenida Rebouças recebeu uma nova classificação, passando a enquadrar-se como ZCOR-3, a qual abrange a instalação de estabelecimentos comerciais e de serviços de grande porte, como cinemas, auditórios, grandes restaurantes, além de escritórios e outros empreendimentos comerciais. Esta mudança de classificação visa promover a dinamização das atividades econômicas, incentivando um uso mais intenso e diversificado daquele local.
3.3. Restrições para caracterização de uso misto
A revisão da Lei de Zoneamento trouxe algumas limitações. Um exemplo disso, foram as restrições para a caracterização de imóveis de uso misto. Antes da revisão, os apart-hotéis, flats e pensões, que são consideradas residenciais com serviços, podiam acrescer até 20% de área construída em seus projetos, quando comparados com empreendimentos residenciais normais, sem a necessidade de compra de outorga onerosa. Agora, por força das mudanças da Lei de Zoneamento, previstas no §6º do art. 62, os apart-hotéis, flats e pensões não possuem mais esse benefício.
Não obstante, o texto da lei não deixou claro se essa nova condição abrange os empreendimentos projetados para a locação de curta temporada, considerados como de hospedagem atípica, tal como o Airbnb. Nesse sentido, tal mudança acaba por desincentivar empreendimentos desta natureza, que antes contavam com inegável incentivo, podendo valer-se de uma área construída superior com um valor menor, ante a desnecessidade de compra de outorga onerosa para o percentual adicional.
3.4. Restrições para caracterização de uso misto
No que tange às chamadas vilas de casas, bastante comuns na cidade de São Paulo, ficou definido na Lei de Zoneamento que a altura de prédios ao redor das chamadas “vilas” ficou restrita a 28 metros, que é a mesma permitida nos “miolos de bairros”, conforme previsto no inciso I do art. 64 da Lei de Zoneamento.
Além disso, visando-se proteger as vilas, foram estas excluídas das áreas de influência dos eixos, portanto, não se valendo dos incentivos urbanísticos vinculadas as ditas áreas, como aqueles destinados aos imóveis próximos aos transportes públicos, por exemplo. Ou seja, mesmo que as vilas estejam dentro dos eixos, elas serão preservadas e excluídas das previsões feitas para o restante da zona. As únicas possibilidades de que as vilas sejam descaracterizadas é se todos os proprietários das casas concordarem com tal decisão ou se todas as casas forem adquiridas por uma única pessoa/empresa. Na hipótese de descaracterização de uma vila de casas, esta será enquadrada nas regras de zoneamento dos imóveis lindeiros.
3.5. Shopping Centers e Templos
A Lei de Zoneamento determinou que shopping centers e templos não estão sujeitos ao limite máximo de loteamento em zona urbana, o qual é de 20.000m2 e testada de até 150m, de acordo com os incisos XII e XIII do parágrafo único, do art. 42 da Lei de Zoneamento. Referida modificação representa um incentivo a empreendimentos dessa natureza.
3.6. Shopping Centers e Templos
Em uma segunda rodada de votações, ocorrida no mês de julho de 2024, foram aprovadas novas mudanças e a compatibilização legislativa da revisão Lei de Zoneamento de São Paulo, por meio da Lei Municipal nº 18.177/2024.
Ditas mudanças contribuem para a expansão imobiliária em zonas nas quais, anteriormente, não era permitido a realização construções, pois tidas como temerárias do ponto de vista ambiental, em virtude do seu tipo de solo (risco de afundamento) ou por serem áreas sujeitas a alagamentos.
No entanto, doravante é permitida a construção em Zonas de Eixo de Estruturação Urbana (ZEUs), situadas em áreas de terra mole e solo compressível da planície aluvial e nas cabeceiras de drenagem, desde que sejam apresentados “métodos de engenharia que impeçam o rebaixamento do lençol d’água”, de acordo com o art. 72 da Lei de Zoneamento de São Paulo.
Ou seja, desde que sejam apresentadas soluções técnicas para rebaixamento do lençol freático, poderá ser permitida a construção de empreendimentos, ficando a expedição de alvará condicionada à apresentação de plantas de sondagem e parecer técnico assinado por profissional habilitado, o qual deverá indicar o nível do lençol freático, bem como a cota de implementação do pavimento mais baixo (§4º, do art. 72 da Lei de Zoneamento de São Paulo/SP).
Ainda, o mesmo art. 72 supracitado traz uma série de regulamentações para as novas construções nessas áreas ou para reformas com ampliação de mais de 50%.
No presente momento são consideradas áreas urbanas “sujeitas a recalques e problemas geotécnicos” os bairros de Moema, Água Branca, Chácara Santo Antonio e Paraíso, conforme o §1º do art. 72 da Lei de Zoneamento de São Paulo, sendo que outros bairros/áreas podem vir a ser incluídos no referido parágrafo, desde que sejam apresentados estudos geológicos e geotécnicos atestando tal situação. A avaliação para a inclusão de novas áreas será realizada pela CEUSO (Comissão de Edificações e Uso do Solo).
Ademais, optou-se por já regular como funcionará a realização de obras subterrâneas e subsolos de futuros empreendimentos localizados em nível inferior ao lençol freático.
Por fim, refere-se a obrigatoriedade de apresentação prévia de contrato de seguro de riscos de engenharia e/ou riscos de obras cíveis em construção para a expedição do Alvará de Execução para os empreendimento a serem construídos nas áreas em questão, as quais estão sujeitas a problemas geotécnicos.
Considerações finais
Após a análise dos principais ponto-chave de alteração no Plano Diretor e Lei de Zoneamento de São Paulo, pode-se dizer que ambas as legislações mostram-se alinhadas com os problemas vivenciados na capital paulista, buscando atender as demandas da sociedade.
A conexão destes instrumentos com a realidade urbana pode ser imediatamente identificada, por exemplo, na sua atenção à problemática relacionada ao deslocamento, vez que há incentivos expressivos aos empreendimentos localizados próximos aos transportes públicos. Além disso, é notório o objetivo de privilegiar o uso misto nos empreendimentos, com as fachadas ativas e propiciando calçadas mais convidativas, por meio do aumento da largura das mesmas, bem como mediante a criação de espaços públicos de convivência.
Para além do objetivo relacionado com a diminuição do congestionamento do trânsito da cidade de São Paulo, verifica-se um esforço extraordinário da revisão do Plano Diretor e da Lei de Zoneamento para fins de solução dos problemas de moradia das famílias de baixa renda, como, por exemplo, o regramento sobre a possibilidade de locação dos empreendimentos de HIS.
Também é importante refletir sobre o seguinte ponto: percebe-se facilmente a quantidade de previsões que estão relacionadas a imóveis de particulares e dos empreendimentos que futuramente possam ser construídos. Como salienta Anthony Ling11, os instrumentos urbanísticos no Brasil deveriam preocupar-se menos com a utilização de espaços privados, o que facilmente pode ser regulado pelo próprio mercado (com critérios e regulações basilares, é claro), e mais com o funcionamento da cidade e de seus espaços públicos.
Fala-se muito de gabarito, vagas de garagem, autorização quanto a permissão de área construída e outorga onerosa. É verdade que estas questões impactam na vida da cidade; entretanto, a sua repercussão é mínima quando as comparamos com a importância quanto à regulação de espaços e de outras questões públicas, como, por exemplo, parques, praças, áreas de preservação natural, gestão de transporte de massa, ciclovias, gestão de resíduos, urbanização de favelas, regulamentação do espaço viário etc. São estes últimos itens que impactam maiormente na vida da população, muito mais do que a regulação de espaços privados.

- Rogers, Richard. Cidade Para Pessoas. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2015, prólogo. ↩︎
- Silva, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 137-138. ↩︎
- Ibidem, p. 235. ↩︎
- Ibidem, p. 239-242. ↩︎
- Reprodução da ilustração que está disponível em: Prefeitura de São Paulo. Plano Diretor Estratégico da Cidade de São Paulo – Texto da Lei ilustrado. Disponível em: https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/
wp-content/uploads/2015/01/Plano-Diretor-Estratégico-Lei-nº-16.050-de-31-de-julho-de-2014-Texto-da-lei-ilustrado.pdf. ↩︎ - Ling, Anthony. “O novo Plano Diretor deveria deixar SP construir mais, não menos”. Caos planejado. Publicado em 26.06.2023. Disponível em: https://caosplanejado.com/o-novo-plano-diretor-deveria-deixar-sp-construir-mais-nao-menos/ ↩︎
- Ibidem. ↩︎
- Mengue, Priscila. “Nova versão para Plano Diretor de SP libera prédios mais altos perto de metrô e no miolo dos bairros”. O Estado de São Paulo. Publicado em 25.05.2023. Disponível em: https://www.estadao.
com.br/sao-paulo/nova-versao-para-plano-diretor-de-sp-libera-predios-mais-altos-perto-de-metro-e-no-miolo-dos-bairros/ ↩︎ - ZEIS são áreas destinadas à produção de habitação de interesse social, incluindo regiões bem localizadas, ao longo dos eixos de transporte público e no centro da cidade de São Paulo. ↩︎
- Reprodução da imagem que está disponível em: Prefeitura de São Paulo. Plano Diretor Estratégico da Cidade de São Paulo – Texto da Lei ilustrado. Disponível em: https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/
wp-content/uploads/2015/01/Plano-Diretor-Estratégico-Lei-nº-16.050-de-31-de-julho-de-2014-Texto-da-lei-ilustrado.pdf ↩︎ - Ling, Anthony. “Quais deveriam ser as prioridades para o urbanismo brasileiro?”. Caos planejado. Publicado em: 22.04.2024. Disponível em: https://caosplanejado.com/quais-deveriam-ser-as-prioridades-para-o-urbanismo-brasileiro/ ↩︎
