
A importância da due diligence para a identificação de riscos jurídicos
Uma análise da Lei nº 14.382/2022 acerca da fraude à execução e da boa-fé do adquirente
Resumo
O artigo propõe uma análise acerca da relevância da auditoria imobiliária (due diligence) para a segurança jurídica dos negócios imobiliários, em especial, quando se trata de aquisição de imóvel para futura incorporação imobiliária, dando ênfase à concentração dos atos na matrícula do imóvel e à eventual identificação de fraude à execução. Como foco dessa análise, são estudadas as novidades introduzidas pela Lei nº 14.382/2022, que alteraram a Lei nº 13.097/2015 (Lei da Concentração dos Atos na Matrícula do Imóvel). Diante da antinomia entre a nova Lei e o Código de Processo Civil acerca da necessidade de comprovação de boa-fé pelo terceiro adquirente, realiza-se uma análise da doutrina e da jurisprudência, com a indicação do atual posicionamento dos Tribunais sobre o tema.
Introdução
A matéria que envolve a concentração dos atos na matrícula do imóvel e a fraude à execução é das mais espinhosas e delicadas enfrentadas no âmbito do direito imobiliário. Isto porque confronta duas posições legítimas: de um lado a do adquirente que adquire onerosamente um imóvel, pretensamente com segurança jurídica, e, de outro, a do credor que busca legitimamente a efetivação do seu direito de crédito.
A recente evolução normativa e jurisprudencial sobre a matéria trouxe relevo e discussão em torno do papel da due diligence nos negócios imobiliários. De acordo com o art. 593 do antigo Código de Processo Civil de 1973 (CPC/1973), bastava a existência de ação fundada em direito real ou capaz de reduzir o devedor à insolvência para a configuração da fraude à execução, pressupondo-se, nesses casos, a má-fé do adquirente, e, portanto, tornando ineficaz o negócio imobiliário. Tratava-se de cenário de absoluta insegurança jurídica ao adquirente, privilegiando o direito do credor judicial, ainda que este último não tivesse agido com a diligência esperada.
A partir de decisões judiciais esparsas, que foram ganhando força ao longo do tempo, a legislação e a própria jurisprudência vêm, paulatinamente, avançando no sentido de conferir maior proteção ao terceiro adquirente de imóvel. Nesse sentido, em 2009, sobreveio o enunciado da Súmula nº 375 do Superior Tribunal de Justiça (STJ)1 para atrelar o reconhecimento da fraude à execução à necessidade de prévio registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente.
Posteriormente, a Lei nº 13.097/2015, em seu art. 54, trouxe à tona o princípio da concentração dos atos na matrícula do imóvel, prevendo que, em regra, os negócios jurídicos imobiliários são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que o credor não tenha dado publicidade do seu crédito junto à matrícula do imóvel.2
Por sua vez, o Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), em seu art. 792, §2º, trouxe a previsão de que o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem.
Houve, assim, antinomia entre as legislações, visto que a legislação que prevê a concentração dos atos na matrícula do imóvel dispensaria o adquirente, em regra, da busca das certidões, enquanto o Código de Processo Civil prevê justamente o contrário. O tratamento distinto atribuído à matéria gerou inclusive a discussão sobre a prevalência de normas, se o CPC/2015 (promulgado em março) teria revogado as inovações propostas pela Lei nº 13.097/2015 (promulgada em janeiro).
Mais recentemente, a Medida Provisória nº 1.085/2021, posteriormente convertida na Lei nº 14.382/2022, estabeleceu de forma expressa que, para a caracterização da boa-fé do adquirente, não será exigida a apresentação de certidões forenses, restringindo-a para tão somente aquelas exigidas para a lavratura de escritura pública.3
Dentro deste contexto é que exsurge o questionamento sobre o papel da due diligence nos negócios imobiliários. Em outras palavras: ainda se faz necessária a realização da auditoria imobiliária com vistas à segurança jurídica do adquirente de imóvel em nosso País?
1. O papel da due diligence nos negócios imobiliários
A due diligence sempre foi uma importante baliza para as aquisições de imóveis por incorporadoras, investidores e terceiros adquirentes em geral, servindo para apontar os eventuais riscos, situações a serem regularizadas e superadas.
A due diligence consiste no trabalho de auditoria e investigação para a realização de um negócio imobiliário, envolvendo costumeiramente a análise das certidões fiscais, forenses e de protestos, do registro civil e do competente serviço registral da pessoa jurídica, em nome do proprietário atual, do cônjuge, da empresa da qual possui (ou possuiu) participação, dos ex-proprietários e do imóvel, obtidos junto aos órgãos públicos pertinentes, dentre outras análises.
Entende-se que a auditoria imobiliária traz consigo dois objetivos principais, quais sejam, identificar questões atinentes ao imóvel e eventual necessidade de sua regularização – como, por exemplo, diretriz viária, área de bosque, remediação, servidão de passagem, usucapião, inventário, extinção de condomínio, cláusulas restritivas, gravames etc. –, bem como avaliar e mensurar os riscos e óbices à concretização da aquisição almejada.
Já o primeiro objetivo, relacionado à viabilização de eventuais regularizações prévias do imóvel, justificaria em nosso ver, a manutenção da realização da due diligence, como forma de antecipar eventuais problemas futuros. Essas regularizações prévias se fazem absolutamente pertinentes e relevantes no contexto da incorporação imobiliária, na qual o incorporador geralmente adquire o terreno mediante contrato de promessa de compra e venda – comumente sujeito a condições resolutivas – e, após a superação das condicionantes, consuma o negócio imobiliário com a realização da escritura pública, a qual se segue o registro da incorporação, nos termos da Lei nº 4.591/1964 e posteriores alterações.
Promovendo uma due diligence criteriosa, o incorporador muitas vezes detecta questões que inviabilizariam futuramente a realização do negócio imobiliário, envolvendo situações tais como: (i) a ocupação do terreno por terceiros não proprietários (locatários, comodatários, ou ocupantes a qualquer outro título); (ii) a necessidade de retificação do título aquisitivo do imóvel por não mais refletir a situação atual; (iii) a verificação de alguma irregularidade do imóvel perante os cadastros municipais; (iv) a existência de eventual limitação ao direito de propriedade por força de questões urbanísticas e/ou ambientais, dentre tantas outras questões passíveis de serem identificadas na prática.
Tais situações não estão diretamente relacionadas ao risco de fraude à execução e ineficácia da aquisição prometida, mas são capazes de prejudicar ou até mesmo inviabilizar o negócio idealizado.
Indo adiante, no caso de aquisição de bem imóvel para fins de realização de incorporação imobiliária, a mera distribuição de demanda com fundamento em fraude à execução pode ocasionar diversos prejuízos ao negócio pretendido, tais como a paralisação das obras do empreendimento, a veiculação com tom negativo na mídia, bloqueio de contas e/ou oneração de unidades autônomas, dentre outros, independente do resultado final deste processo.
Qualquer movimento impensado, intencional ou não, pode gerar uma discussão sobre fraude à execução. É justamente dentro deste contexto que reside a importância vital da due diligence no âmbito da aquisição de terrenos para a realização de empreendimentos imobiliários. Uma auditoria imobiliária realizada com profundidade e detalhamento consegue tanto mapear questões atinentes à regularização imobiliária quanto antever situações que possam caracterizar fraude à execução, alcançando-se a segurança jurídica pretendida. Um parecer jurídico propositivo pode ir além e apresentar sugestões de solução aos pontos críticos, como, por exemplo, a busca de outros imóveis ou móveis em nome do devedor, a substituição do gravame que onera o bem pretendido entre outras medidas que viabilizem a realização do negócio imobiliário com a segurança jurídica almejada.
Na prática consultiva, são corriqueiras as situações em que, por exemplo, o bem imóvel ainda está no nome dos pais da parte vendedora, ou mesmo arrolado numa partilha judicial (inventário ou divórcio), ou, ainda, os vendedores faleceram sem ter o comprador recebido a escritura definitiva: o que se tem é apenas o contrato particular e a posse com ânimo de dono. Também são comuns pendências fiscais ou de dívidas judicializadas.
Com a análise das certidões e documentos atinentes ao imóvel é possível identificar, exemplificativamente: (i) a existência de gravames, dívidas, restrições para alienação ou construção; (ii) a cadeia sucessória; (iii) a regular distribuição das frações ideais entre os proprietários; (iv) o título aquisitivo outorgado ao alienante – especialmente se tiver sido celebrado sob alguma condição –; e, (v) a posse (locação, comodato, arrendamento, usufruto etc).
Em relação ao vendedor, cônjuge e sócios, conforme o caso, e aos demais partícipes pertencentes à cadeia sucessória do imóvel, busca-se apurar o passivo fiscal, forense e de protestos, a partir do estudo dos relatórios de débitos (balancetes), das demandas judiciais, da origem das dívidas, da verificação de eventual existência de grupo econômico e da probabilidade de atingimento do imóvel pretendido.
Portanto, é fundamental a due diligence para, justamente, identificar os problemas com potencial para gerar discussão futura.
Ademais, em que pese o cenário jurídico que vem sendo construído em favor do princípio da concentração dos atos na matrícula do imóvel, em especial, a partir da Lei nº 14.382/2022, permanece, como veremos a seguir, sendo recomendável a realização da due diligence.

2. O princípio da concentração dos atos na matrícula do imóvel
Com o advento da Lei dos Registros Públicos (Lei nº 6.015/1973), vigente desde 01.01.1976, os bens imóveis deixaram de ser transcritos – em verdade, transcrevia-se o título aquisitivo – e passaram a ser registrados, cada qual em uma matrícula própria, contendo, em ordem cronológica e na forma narrativa, os registros e averbações dos atos pertinentes ao imóvel matriculado4. Atualmente, a matrícula traz consigo a natureza do imóvel (se rural ou urbano), características e confrontações, localização, área, logradouro, número e sua designação cadastral, se houver, qualificação do proprietário, o número do registro anterior e, no caso de imóvel em regime de multipropriedade, a indicação da existência de matrículas5. Nos dizeres de João Pedro Lamana Paiva, Oficial Registrador titular do Cartório do Registro de Imóveis da 1ª Zona de Porto Alegre/RS, a matrícula (fólio real) é “um autêntico curriculum vitae da propriedade imobiliária”.6
Esta breve contextualização faz-se necessária para explicar que a concentração dos atos na matrícula do imóvel, prevista no art. 54 da Lei n° 13.097/2015 e reafirmada pela Lei n° 14.382/2022, constitui um princípio registral segundo o qual todas as circunstâncias que não apenas promovam a constituição, transferência ou modificação de direitos reais, mas também possuam o condão de informar (leia-se, dar publicidade) e prevenir direitos de terceiros, devem ser consignadas no registro imobiliário de todo e qualquer bem imóvel. Exemplificativamente, são passíveis de averbação na matrícula do imóvel a escritura pública de constituição de hipoteca em garantia; a certidão de admissão de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença; a certidão de restrições administrativas ou convencionais ao gozo de direitos registrados; a ordem de indisponibilidade ou de outros ônus; a notícia de ação que tenha potencial para reduzir o titular registral do bem à insolvência; a existência de constrições judiciais, penhoras, arrestos, sequestros etc.
Por outro lado, o credor que não faz gravar na matrícula do imóvel do devedor a existência do seu crédito, não poderá opor seu direito ao terceiro de boa-fé que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre tal imóvel. Justamente porque a concentração dos atos na matrícula do imóvel tem por finalidade assegurar a prevenção de direitos do adquirente de imóvel e do credor proativo, que procura dar publicidade da sua demanda a terceiros.
O princípio da concentração coaduna-se com os princípios da continuidade registral e da publicidade e, por conta disso, assume um viés mais voltado à salvaguarda dos interesses creditórios de pessoa física ou jurídica frente ao proprietário tabular. Com a propagação e melhor utilização deste princípio, cada vez mais os credores terão de assegurar a satisfação dos seus créditos mediante a gravação do seu direito junto à matrícula do bem imóvel de titularidade do devedor, sob pena de não poder opor seu direito em relação à eventual alienação deste bem.

3. Sobre a prevenção da fraude à execução no contexto dos negócios imobiliários
A dispensa expressa das certidões forenses ou de distribuidores judiciais – mantendo-se apenas as de propriedade do imóvel e as fiscais – para a caracterização da boa-fé do terceiro adquirente, tal como se verifica do parágrafo segundo do artigo 54 da Lei nº 13.097/2015 (incluído pela Lei nº 14.382/2022) –, poderia, à primeira vista, levar ao entendimento de que a elaboração da due diligence se tornou prescindível. Este, todavia, não é o entendimento mais prudente.
Primeiramente, porque é a partir da busca e análise das certidões forenses e/ou distribuidores judiciais que será possível averiguar a eventual ocorrência das exceções trazidas nos termos do art. 54, §1º, da Lei nº 13.097/2015: “(…) o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 [ineficácia e revogabilidade de atos praticados antes da falência], e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel [a desapropriação e a usucapião]”.
Além destas exceções, a venda de bem imóvel ou oneração de bens ou rendas pelo sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa, é presumida como fraudulenta, consoante versa o art. 185 do CTN, independentemente do ajuizamento de ação pelo ente público e anotação na matrícula do imóvel. Ressalva-se que a presunção de fraude pode ser elidida somente quando o devedor reserva patrimônio suficiente para a garantia do débito fiscal, sendo ônus do executado/alienante e do terceiro adquirente a demonstração da solvência do alienante, conforme inteligência do art. 185, parágrafo único, do CTN e do Tema 290 do STJ7. Portanto, a análise de certidões cotejada na due diligence oportuniza a identificação de eventuais débitos tributários inscritos em dívida ativa e, neste caso, a averiguação da (in)existência de patrimônio suficiente ao total pagamento do débito.
O ponto nevrálgico no âmbito da auditoria imobiliária é a análise acerca da eventual existência de fraude à execução, ante a colisão do art. 792 do CPC com o §2º do art. 54 da Lei nº 13.097/2015, com a redação trazida pela Lei nº 14.382/2022. Explicamos.
Prevê o Código de Processo Civil que a alienação em fraude se verifica nas hipóteses de prévia averbação, pelo credor, de sua demanda (incisos I, II e III, do art. 792), bem como se, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência (inciso IV do art. 792). O §2 do art. 792 faz ainda a ressalva que o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem.
Por outro lado, a nova redação do §2º do art. 54 da Lei nº 13.097/2015, trazida pela Lei nº 14.382/2022, objetiva privilegiar o princípio da concentração dos atos na matrícula, não exigindo a busca completa de certidões – dos distribuidores judiciais, especialmente – para a caracterização da boa-fé do terceiro adquirente.
Portanto, temos a seguinte situação: de um lado, o CPC conferindo à busca das certidões participação fundamental na caracterização da boa-fé do terceiro adquirente; e, de outro, a norma especial enaltecendo o princípio da concentração dos atos na matrícula, dispensando a busca de certidões pelo terceiro adquirente para a comprovação da sua boa-fé.
Vê-se, nessa linha, que uma das questões centrais é a boa-fé do adquirente. Com maestria, os juristas Fredie Souza Didier Jr. e Paula Sarno Braga8 elucidam que a boa-fé do adquirente é presumida pelo legislador, cedendo apenas diante da publicidade de averbações na matrícula do imóvel pelo credor, na forma do art. 792, incisos I, II e III, do CPC. Na hipótese de não haver anotação no registro imobiliário do bem, caberá ao credor-exequente comprovar que o adquirente sabia da sua demanda.
Explanam ainda os referidos doutrinadores que também é necessária a demonstração da scientia fraudis quando se tratar de alienação ou oneração de bem na pendência de demanda capaz de reduzir o devedor à insolvência (art. 792, inciso IV, do CPC, e art. 54, inciso IV, da Lei nº 13.097/2015). Neste caso, tratando-se de ação sujeita à averbação na matrícula imobiliária, mas não averbada, deverá o credor-exequente provar que o adquirente tinha conhecimento, inclusive dos riscos.
A jurisprudência, por sua vez, ainda apresenta vacilação com relação à matéria, não havendo um entendimento consolidado que confira a segurança jurídica desejada, sendo, no entanto, valiosa justamente a apreciação da boa-fé das partes no caso concreto. Vejamos alguns exemplos de julgados da matéria.
Com fundamento no art. 792, IV, do CPC, entendeu o TJPR pela má-fé dos adquirentes que assumiram os riscos e optaram por prosseguir com a operação de compra e venda, mesmo cientes da existência de demandas ajuizadas em face do alienante, as quais foram consignadas expressamente no instrumento público de compra e venda.9
Por sua vez, em julgado no TJSP, entendeu-se que a boa-fé do adquirente não se coadunou com a aquisição de imóvel por preço muito inferior ao de mercado, somada à falta de cautela quanto à busca de certidões de ações ajuizadas contra o vendedor, ocasião em que o Tribunal Paulista se manifestou no sentido de que “a concentração dos atos na matrícula do imóvel não é suficiente para que o adquirente deixe de adotar maiores cautelas na aquisição de bem imóvel”.10
Ainda sobre o dever de cautela, o TJSC suscitou a publicidade processual em decisão envolvendo imóvel litigioso em decorrência de vendedora que atuava com contumácia em operações fraudulentas: “Na alienação de imóveis litigiosos, ainda que não haja averbação dessa circunstância na matrícula, subsiste a presunção relativa de ciência do terceiro adquirente acerca da litispendência, pois é impossível ignorar a publicidade do processo, gerada pelo seu registro e pela distribuição da petição inicial, nos termos dos arts. 251 e 263 do CPC. Diante dessa publicidade, o adquirente de qualquer imóvel deve acautelar-se, obtendo certidões dos cartórios distribuidores judiciais que lhe permitam verificar a existência de processos envolvendo o comprador, dos quais possam decorrer ônus (ainda que potenciais) sobre o imóvel negociado”.11
Na linha dos julgados observados, a desvinculação da obtenção de certidões forenses ou de distribuidores judiciais, prevista pela Lei especial, está sendo analisada caso a caso pelo Poder Judiciário. No entanto, é possível observar certa tendência da jurisprudência de realizar uma interpretação restritiva (e não ampliativa) da legislação da concentração dos atos na matrícula do imóvel. Na medida em que está sob a tutela do Poder Judiciário uma relação processual de crédito e débito, em fase de execução, a intuição do julgador é por buscar a efetividade do processo, entregando ao credor o resultado almejado, o que por vezes esbarra, justamente, na figura do terceiro adquirente. Daí porque, nos casos judicializados, a boa-fé do adquirente será objeto de análise com maior profundidade pelo julgador, com base nos elementos de prova.
É justamente dentro deste contexto que, ainda que a busca das certidões tenha deixado de se tornar obrigatória nos termos da legislação da concentração dos atos na matrícula do imóvel, a due diligence permanece sendo altamente recomendável, com redobradas razões nas operações que envolvem a celebração de negócios por adquirentes profissionais, como as incorporadoras.
Considerações finais
É preciso enaltecer o princípio da concentração dos atos na matrícula do imóvel, as suas recentes alterações e os avanços nela consignados. Atuando pari passu com o instituto da fraude à execução, objetiva-se não apenas diminuir as chances daquele que pretende dilapidar o seu patrimônio em fraude à demanda judicial em curso, mas, principalmente, comprometer o credor a fazer anotar à margem do registro imobiliário o direito a ser assegurado.
Em que pese os avanços legislativos relacionados à matéria da fraude à execução e do maior prestígio que o sistema jurídico vem passando a dar, paulatinamente, ao princípio da concentração dos atos na matrícula do imóvel – em especial a partir da Lei nº 14.382/2022 –, permanece sendo altamente recomendável a realização da due diligence, como forma de afastar ou minimizar riscos jurídicos, inclusive, ao efeito de evitar a declaração de fraude à execução.
No caso das construtoras, incorporadoras e demais adquirentes habituais de imóveis, o princípio da concentração dos atos na matrícula do imóvel tende a ser relativizado e sobre eles recaem um maior dever de diligência, pois desenvolvem a atividade imobiliária com alcance de uma pluralidade de partícipes – consumidores, corretores de imóveis, agentes financeiros, entes públicos, fornecedores etc. – e, por tal relevância e habitualidade, ficam naturalmente responsáveis por avaliar com mais profundidade os riscos jurídicos.
- Súmula nº 375 do STJ: “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do
bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”. ↩︎ - Recentemente, foi incluído o inciso V ao art. 54 da Lei nº 13.097/2015 pela Lei nº 14.285/2024: Art. 54. “Os negócios jurídicos que tenham por fim constituir, transferir ou modificar direitos reais sobre imóveis são eficazes em relação a atos jurídicos precedentes, nas hipóteses em que não tenham sido registradas ou averbadas na matrícula do imóvel as seguintes informações: (…) V – averbação, mediante decisão judicial, de qualquer tipo de constrição judicial incidente sobre o imóvel ou sobre o patrimônio do titular do imóvel, inclusive a proveniente de ação de improbidade administrativa ou a oriunda de hipoteca judiciária”. ↩︎
- Nos termos do art. 1º, §2º, da Lei nº 7.433/1985, as certidões exigidas para a lavratura de escritura pública são o comprovante de recolhimento do imposto de transmissão, certidões fiscais e as certidões de propriedade e de ônus reais. ↩︎
- De acordo com a redação original do art. 173 da Lei de Registros Públicos. ↩︎
- Alterações trazidas pelas Leis nº 10.267/2001 e 13.777/2018. ↩︎
- Paiva, João Pedro Lamana. “A História do Sistema Registral Brasileiro”. Aula ministrada no ano de 2014 para o “I Curso em Direito Imobiliário Registral Aplicado aos Bens Públicos”, da Escola Nacional de Notários e Registradores (ENNOR), 2014. Disponível em https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/patrimonio-da-uniao/arquivos-anteriores-privados/programa-de-modernizacao/linha-do-tempo/arquivos-e-publicacoes/historia-do-sistema-registral-brasileiro.pdf. ↩︎
- Tema 290, STJ. “Se o ato translativo foi praticado a partir de 09.06.2005, data de início da vigência da Lei Complementar nº 118/2005, basta a efetivação da inscrição em dívida ativa para a configuração da figura da fraude”. Conferir, por exemplo: STJ, AgInt no REsp 1853907 nº 2019/0374938-9, 1ª Turma, Relator Min. Paulo Sérgio Domingues, DJe 29/05/2023; TRF-5. Agravo de Instrumento nº 0800732-97.2022.4.05.0000, 3ª Turma, Relator Des. Federal Rogério De Meneses Fialho Moreira, DJe 28.04.2022. ↩︎
- DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno. O princípio da concentração da matrícula e a fraude à execução: um diálogo entre a Lei nº 13.097/2015 e o CPC/2015. Revista Opin. Jur., n. 23, p. 310-330, jul./dez. 2018, pág. 314. ↩︎
- TJPR, Apelação nº 0009125-16.2020.8.16.0019, 17ª Câmara Cível, Relator Des. Rogerio Ribas, DJe 10/10/2022. ↩︎
- TJSP, Apelação nº 018510-11.2018.8.26.0100, 30ª Câmara de Direito Privado. Relator Des. Lino Machado, DJe 13/12/2018. ↩︎
- TJSC, Apelação Cível nº 0311808-12.2016.8.24.0005, 17ª Câmara de Direito Civil, Relator Des. Carlos Roberto da Silva, DJe 03/12/2020. ↩︎
