
A tokenização de ativos imobiliários: Alternativa para otimizar a velocidade e a transparência de transações comerciais
Resumo
Por meio de tokens registrados em uma rede blockchain, é possível construir os smart contracts (contratos inteligentes), representados por uma linha de programação que define as regras sobre quem é autorizado a fazer o que e quando. Neste artigo, propõe-se analisar o que vem sendo utilizado pelo mercado imobiliário em termos de tokenização de ativos como alternativa para otimizar a velocidade e a transparência de transações comerciais, democratizar o acesso a investimentos, diminuir custos e automatizar a execução de contratos. Examina-se, ainda, a intersecção dos casos de uso de tokens com o direito real de propriedade e o Sistema Registral Brasileiro, além das questões de governança atreladas ao uso desta tecnologia. Em especial, coloca-se em relevo o Provimento nº 038/2021, que regulamenta a lavratura de escrituras públicas de permuta de bens imóveis com contrapartida de tokens/criptoativos e o respectivo registro imobiliário pelos Serviços Notariais e de Registro do Rio Grande do Sul.
Introdução: As redes blockchain e o fenômeno da tokenização
Desde a sua popularização na década de 1990, a internet revolucionou o acesso à informação e aos meios de comunicação, alterou as relações interpessoais e transformou o acesso aos bens de consumo, sendo exemplos comuns deste fenômeno o e-commerce e as plataformas de streaming. Mais recentemente, ampliou-se a possibilidade de compra e venda diretamente em aplicativos, havendo inclusive novas formas de pagamento instantâneo.
Em seu livro Economia dos Tokens, a autora e pesquisadora Shermin Voshmgir ilustra a evolução da internet por meio de três grandes momentos, sendo o primeiro deles denominado como a “Era da Informação”, marcada pelo surgimento de web browsers (navegadores) e de sites de busca. A segunda fase da internet, denominada Web2, revolucionou as interações e transações a partir de aplicações que permitem ler e escrever em tempo real, com o surgimento das redes sociais e do comércio eletrônico na chamada era da “Economia das Plataformas”. Agora, a promessa da próxima geração da internet, denominada Web3, é ser mais descentralizada, reinventando a forma como as informações são armazenadas, além de pretender revolucionar as transações e as trocas de valores, apresentando como sua força motriz as redes blockchain e os tokens, em uma era da “Economia dos Tokens”.1
História da web2

A blockchain é conceituada pelos escritores e pesquisadores Don Tapscott e Alex Tapscott como um livro-razão digital e distribuído que representa um consenso sobre cada operação que já ocorreu na rede, podendo ser programado para gravar praticamente todas as transações expressas em código, como certidões de nascimento, óbito e casamento, ações e títulos de propriedade, diplomas de ensino, contas financeiras, votos etc.3
A sua disseminação está intrinsicamente ligada à criação da criptomoeda (moeda digital) chamada Bitcoin, por uma ou algumas pessoas sob o pseudônimo de Satoshi Nakamoto, que desenvolveu um protocolo em sistema ponto a ponto de dinheiro eletrônico, estabelecendo um conjunto de regras, na forma de cálculos distribuídos, que asseguram a integridade dos dados trocados entre bilhões de dispositivos, sem passar por uma terceira parte confiável. Daí a ideia de descentralização da rede blockchain, que não pertence a nenhuma autoridade central, sendo armazenada em uma rede peer-to-peer (ponto a ponto ou P2P).4
1. História da web[113]
Há um crescente número de livros-razão distribuídos globalmente, sendo o Blockchain Bitcoin o maior deles, e a escolha pela utilização destas redes pode ser explicada, em parte, pela existência do Protocolo da Confiança, o qual confere segurança às transações, cujos dados ficam armazenados permanentemente em um bloco que está ligado ao bloco anterior, criando, assim, uma corrente e impedindo que qualquer pessoa altere o livro-razão. No exemplo da criptomoeda, caso alguém pretendesse roubar um Bitcoin, precisaria reescrever toda a sua história, o que é praticamente impossível.5 Trata-se de colaboração em massa e de consenso sobre cada operação que já ocorreu na rede, permitindo que todas as partes consigam confirmar que a transação existe, prescindindo da figura de um terceiro intermediário.
A evolução das redes blockchain é materializada através dos tokens, instrumentos de gestão de direitos que podem representar qualquer bem digital ou físico ou direito de acesso a bens, pretendendo ser mecanismo facilitador para a colaboração entre mercados e jurisdições, permitindo interações mais transparentes, eficientes e justas entre os participantes do mercado, a baixos custos.6
Por meio de tokens registrados em uma rede blockchain, é possível construir os smart contracts (contratos inteligentes), representados por uma linha de programação que define as regras sobre quem é autorizado a fazer o que e quando. Este pedaço de código escrito em uma rede distribuída peer-to-peer é automaticamente executado quando a maioria dos atores da rede concorda que as condições pré-definidas foram implementadas, podendo automatizar e organizar pagamentos e, em seguida, executar automaticamente os seus termos, de forma a reduzir radicalmente os custos de monitoramento e auditoria das transações.7
Para além de todas as questões de governança, especialmente sobre quem decidirá as regras escritas dentro dos códigos em redes blockchain, e de transparência, privacidade e proteção de dados, questiona-se qual será a real utilização dos tokens. Segundo a pesquisadora Shermin Voshmgir, o hype (moda) envolvendo a blockchain decorre da narrativa de que a nova geração da Internet resolveria muitos problemas atuais, conferindo maior controle sobre as informações e os dados privados.
Já é possível sustentar que “a Web3 e suas aplicações tokenizadas podem alterar a dinâmica dos sistemas socioeconômicos, e é por isso que uma boa compreensão sobre a tecnologia e suas aplicações é fundamental para o processo de cocriação desta nova infraestrutura coletiva”8.
No que concerne ao objeto do presente artigo, propõe-se analisar o que vem sendo utilizado pelo mercado imobiliário em termos de tokenização de ativos como alternativa para otimizar a velocidade e a transparência de transações comerciais, democratizar o acesso a investimentos, diminuir custos e automatizar a execução de contratos. Pretende-se, ainda, examinar a intersecção dos casos de uso de tokens com o direito real de propriedade e o Sistema Registral Brasileiro, além das questões de governança atreladas ao uso desta tecnologia.
O presente estudo não pretende abordar temas correlatos, como a recente regulamentação das criptomoedas pelo Poder Legislativo e pela Comissão de Valores Mobiliários, matéria que em razão de sua especialidade foge ao escopo delimitado.
2. A tokenização em negócios jurídicos imobiliários. Casos de uso.
Os tokens são certificados digitais de posse existentes em uma rede blockchain, podendo representar virtualmente qualquer ativo com características únicas, a exemplo de bens imóveis, obras de arte, ingressos e certificados, enquadrando-se, nestes casos, na categoria que se convencionou chamar de NFTs (Non-Fungible Tokens) – Tokens Não Fungíveis.
A tokenização, neste sentido, é o mecanismo de transposição ou digitalização de algo real e com valor econômico para o mundo virtual, o qual, sustentado na promessa de desburocratização, apresenta as seguintes vantagens: a) fácil gerenciamento de direitos; b) maior liquidez; c) novas e mais inclusivas formas de investimento no mercado imobiliário; e d) cobrança automatizada de rendas.9 Ainda, a depender do ambiente regulatório, os ativos tokenizados podem ser elegíveis para a abertura aos mercados globais, acrescentando mais liquidez e proporcionando novas oportunidades para investidores estrangeiros.10
A vantagem mais difundida a respeito da tokenização de bens imóveis é a possibilidade de que mesmo correspondendo a um bem físico não divisível, o ativo digital seja fracionado, ou seja, dividido em partes, e vendido a vários detentores ou investidores. Como exemplo, cita-se a emissão de tokens fracionados de um apartamento que se pretende adquirir, permitindo angariar fundos sem necessidade de contratação de empréstimo bancário, podendo os detentores dos tokens, na qualidade de coinvestidores, receber uma renda fracionada na proporção da quantidade de participações que detêm, a qual será dividida e administrada por meio de um smart contract.11
O fracionamento de bens imóveis por meio da tokenização já é uma realidade no Brasil, sendo o primeiro exemplo desta utilização uma sala comercial de 24mÇ localizada no Edifício Santa Cruz, na cidade de Porto Alegre/RS, que em 07/12/2022 alcançava 400 proprietários de tokens e que já ultrapassa 9.000, cujas transações de pagamentos ocorrem dentro da plataforma construída em rede blockchain, havendo o rateio de aluguéis mensalmente entre os proprietários digitais enquanto o imóvel permanece alugado.12 Essa é considerada a primeira propriedade digital do país.
A plataforma responsável pela tecnologia utilizada nessa transação oferece, ainda, opções de fracionamento em menor escala, sendo emblemático o caso da venda por frações a uma senhora idosa de 82 anos que adquiriu 20% da propriedade digital de um apartamento. A partir da digitalização do imóvel, as derivações possíveis passaram a ser o estabelecimento de moradia por esta senhora, que deveria pagar aluguéis proporcionais aos demais proprietários de tokens que representam 80% da propriedade digital, ou a locação a terceiros, hipótese na qual a detentora dos 20% da propriedade digital receberia aluguéis proporcionais à sua fração.13
O fracionamento da propriedade digital, apresentado como alternativa para a aquisição de bem imóvel sem a necessidade de contratação de financiamento perante instituições financeiras tradicionais, as quais possivelmente negariam a concessão do crédito imobiliário neste exemplo da senhora de 82 anos, vêm sendo comercializado por meio de planos de assinatura, ferramenta que possibilita a compra recorrente de frações digitais de imóveis à escolha de seus assinantes, de acordo com os limites de cada plano escolhido, que variam entre R$ 5,90 e R$ 499,00 mensais.14
Uma vez selecionados os imóveis, as compras se tornam automáticas e ocorrem mensalmente, sendo a gestão destes imóveis realizada pela carteira digital e as decisões tomadas através de votação entre os proprietários, como em uma assembleia tradicional. Em suma, o detentor de 10% da propriedade digital de um imóvel será beneficiário de 10% dos aluguéis que esse imóvel vier a produzir, como também será responsável por 10% das despesas, caso existam, no período em que o imóvel estiver desocupado. Ainda, tal como ocorre na propriedade tradicional, o proprietário de frações digitais deverá declará-las no imposto de renda, bem como todos os rendimentos decorrentes de aluguéis recebidos enquanto o imóvel estiver locado.
A proposta de democratização e flexibilização na aquisição de imóveis pela proptech também é materializada pela possibilidade de concessão de financiamentos imobiliários usando o NFT representativo de bem imóvel como garantia. Por meio da plataforma e de seus corretores certificados, propõe-se que empresas concessoras de crédito ganhem velocidade e segurança na transação, oferecendo taxas potencialmente menores em comparação ao mercado convencional.15
Além dos tokens representativos da propriedade digital ou de fração da propriedade digital, há tokens que fornecem acesso a aplicações ou serviços, a exemplo de plataformas que atuam como marketplace, em que tokens funcionam como chaves que concedem acesso a um ecossistema, havendo a intermediação entre usuários e prestadores de serviços ou vendedores de todo o mercado imobiliário. Nesta plataforma, os usuários são conectados a arquitetos, engenheiros, designers, pintores, advogados, vidraceiros etc., que aceitam o token em suas transações, possibilitando a tokenistas permutar bens e serviços, comprar recebíveis, reformar, comprar e vender imóveis, entre outros.16
Como visto, há muito potencial na tokenização de ativos no mercado imobiliário, no entanto, há igualmente muitos desafios práticos relacionados a questões de regulação e governança. A má compreensão sobre a propriedade fracionada de imóveis, por exemplo, pode tornar os investimentos perigosos, dificultando as tomadas de decisão acertadas.17
3. Aspectos registrais e de regulação da tokenização de bens imóveis
Os entusiastas do uso de NFTs no mercado imobiliário acreditam que a desburocratização poderá ampliar o acesso a investimentos, havendo pesquisas que já indicam a possibilidade de redução considerável de custos envolvidos na transferência de propriedade por meio de registros baseados em blockchain. Ainda, a utilização de redes blockchain poderá simplificar a transferência de bens imóveis, um processo tradicionalmente moroso.18
Os autores do livro Non-Fungible Book: Introduction to NFTs mencionam a possibilidade de uso da tecnologia no mercado imobiliário e divagam sobre futuras aplicações, sustentando que, em alguns anos, comprar e vender uma propriedade poderá se tornar tão simples quanto postar uma foto, já que tudo estará em uma rede blockchain e o número de intermediários poderá diminuir drasticamente.19
Nesta fronteira entre o físico e o digital, questiona-se como garantir que a um único bem físico não sejam associados múltiplos ativos digitais e, ainda, como refletir eventuais mutações do bem imóvel ocorridas no mundo físico também no mundo digital. Seria então razoável considerar a adoção de oráculos operados no mundo físico, por pessoas ou instituições autorizadas e consideradas confiáveis, que agiriam como gatekeepers, ou seja, como guardiões da legalidade.20
Os Ofícios de Registro já atuam, nesta perspectiva, como verdadeiros gatekeepers registrais e “oráculo entre a realidade jurídica extrarregistral, representada por atos, fatos ou negócios jurídicos, e o ‘metaverso jurídico-real’ (repositório de matrículas e registros).”21 As iniciativas de tokenização imobiliária paralegais (metaverso extrarregistral), sem estes oráculos reconhecidos em lei, poderia abrir espaço para fraudes, como múltiplas tokenizações do mesmo imóvel em diferentes redes blockchain e negociação de ativos sem lastro.22
No que concerne especificamente ao registro de transferência da propriedade em redes blockchain de plataformas privadas, questiona-se se a operação estaria revestida da oficialidade e da estatalidade exigidas pela legislação23. Isso porque os Serviços Notariais e de Registro no Brasil são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público24, sendo opção do legislador constituinte a manutenção destas atividades na titularidade do Estado, por meio de fiscalização quanto ao cumprimento dos ditames legais pelos notários e registradores, cujos atos são dotados de fé pública.25
O serviço registral garante a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos que visam à constituição, declaração, transferência e extinção de direitos reais ou obrigações com eficácia real relativas a imóveis26. Neste contexto, tanto a Lei de Registros Públicos, em seu art. 172, do Código Civil, nos arts. 1.245, 1.246 e 1.247, exigem que sejam registrados e averbados no Registro de Imóveis todos os atos jurídicos que visam à constituição, declaração, transferência e extinção de direitos sobre bens imóveis.
No Brasil, em suma, enquanto o título não for registrado, não haverá transferência da propriedade e, entre o alienante e o adquirente, só haverá direito obrigacional. Trata-se de um sistema de registro de direitos que concede proteção aos que celebraram o ato jurídico e a terceiros, em razão da presunção de que o direito constituído, declarado, transmitido ou extinto está de acordo com o ordenamento jurídico.27
As iniciativas de tokenização de bens imóveis suscitam, assim, questionamentos relevantes quanto à substituição deste sistema por plataformas privadas que operam em redes blockchain, sendo está a controvérsia objeto da consulta realizada pela Associação dos Notários e Registradores do Estado do Rio Grande do Sul – ANOREG- RS e do Fórum de Presidentes das Entidades Extrajudiciais Gaúchas à Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Ofício nº 020/2021.
A origem da consulta foi o modelo de negócio imobiliário que utiliza a tokenização de bens imóveis para possibilitar o fracionamento da propriedade digital, como mencionado no item anterior, e cujo processo é constituído pelas seguintes etapas: 1) O proprietário registral acessa a plataforma da proptech e solicita a digitalização de seu imóvel; 2) Através do registro de uma escritura pública de permuta, a propriedade registral é transferida à plataforma, em contrapartida da quantidade de tokens em smart contract específico, sendo pagos pelo antigo proprietário registral o Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e demais emolumentos; 3) O antigo proprietário registral torna-se proprietário digital do imóvel na plataforma; 4) A propriedade digital é registrada por uma transação em blockchain, permitindo que o proprietário digital transmita a propriedade a terceiros28.
Neste cenário, cria-se um vínculo considerado bidirecional entre o token e o imóvel, em que tanto o token traz as informações sobre a matrícula no Registro de Imóveis, como a matrícula carrega os dados do token, gozando os proprietários de segurança conferida pelo serviço registral e pela blockchain.29
Após a análise da consulta em referência, a Desembargadora Vanderlei Teresinha Tremeia Kubiak, Corregedora-Geral de Justiça do Rio Grande do Sul, determinou a publicação do Provimento nº 038/2021, regulamentando a lavratura de escrituras públicas de permuta de bens imóveis com contrapartida de tokens/criptoativos e o respectivo registro imobiliário pelos Serviços Notariais e de Registro do Rio Grande do Sul30.
Em sua decisão, a Corregedora-Geral de Justiça acolheu o parecer exarado pelo Juiz-Corregedor Dr. Maurício Ramires, tendo por objeto regulamentar e orientar a atividade notarial e registral, sem adentrar em questões colaterais, como as possíveis implicações perante o mercado de valores mobiliários, a arrecadação de tributos e o controle de circulação de bens e valores para fins de prevenção e combate à lavagem de dinheiro e outros ilícitos.

Destaca-se como ponto de relevância a conclusão de que não haveria empecilho em se reconhecer a existência de uma propriedade digital de bem imóvel, desde que compreendida como instituto de natureza meramente obrigacional, sem potencial de criação de um “Registro de Imóveis paralelo”. Da mesma forma, a Corregedoria concluiu não haver problemas no fato de a permuta de um bem imóvel ter como contrapartida tokens ou criptoativos, os quais possuem valor de mercado/valor transacionável e, portanto, podem ser incluídos em uma permuta por qualquer outro objeto lícito, como um bem imóvel.
Ao considerar a plataforma como detentora de espécie de nua-propriedade, permanecendo o direito de uso e gozo do bem ao proprietário digital, único legitimado a dispor do imóvel no ambiente digital, propôs-se a publicação de normativa orientando que a lavratura de escrituras públicas de permuta de imóveis por tokens só poderia ser autorizada mediante declarações expressas das partes, no sentido de que: a) reconhecem e mensuram o conteúdo econômico do token objeto da permuta e que b) o conteúdo do tokens não representa direitos de propriedade sobre o próprio imóvel permutado, mas mera relação obrigacional entre as partes. Ainda, restou definido que todos os atos deverão ser comunicados ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), na forma do Provimento nº 88/2019 do Conselho Nacional de Justiça.
Para o registrador de imóveis João Pedro Lamana Paiva, considerando que o Brasil adota o Sistema de Registro de Direitos e que, portanto, para ser proprietário é necessário o binômio título e modo (registro), a tokenização não acabará com a atividade registral, sendo a compreensão atual a de que a propriedade digital não substitui e não guarda vínculos com a propriedade formal decorrente do registro. Por meio de uma interconexão a ser criada, as dimensões digital e jurídica, por ora incomunicáveis, poderão expressar o mesmo significado. Enquanto a interconexão não é estabelecida, quem adentra na realidade digital é conhecedor dos riscos que enfrenta ao se despojar da propriedade.31
A sugestão dada por Lamana Paiva é de que haja a afetação do imóvel através de uma notícia na sua matrícula, no sentido de que o bem está relacionado a negócios digitais, sendo todas as operações negociadas via token anotadas na matrícula, conferindo publicidade e segurança às aquisições de frações da propriedade digital (averbação sem conteúdo econômico). Em razão desta afetação, a plataforma digital não poderia dispor do imóvel a terceiros e aqueles que negociam no ambiente digital teriam segurança pelo acesso da informação na matrícula.
Como referido anteriormente, há ainda outras questões de governança em discussão, a exemplo de quem seria o órgão fiscalizador e garantidor das transações realizadas por tokens e que poderia regulamentar e distinguir os direitos concedidos. Por ora, as regras de governança das plataformas digitais regulam os direitos de cada detentor para questões relevantes, como a decisão pela venda do imóvel e as consequências no caso de o emissor do token não distribuir a renda aos demais detentores de frações da propriedade digital.32
A fim de acompanhar as inovações do mercado imobiliário, a modernização dos registros públicos é essencial, sendo um exemplo recente nesta direção a conversão da Medida Provisória nº 1.085/2021 na Lei nº 14.382 de 27/06/2022, a qual dispõe sobre o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (SERP), bem como moderniza e simplifica os procedimentos relativos aos registros públicos de atos e negócios jurídicos, de que trata a Lei nº 6.015/73, e de incorporações imobiliárias, a Lei nº 4.591/64.
A compatibilidade do mercado imobiliário com a Web3, desde o processo registral até a plataforma reguladora dos smart contracts, é apontada como pré-requisito para a tokenização33, de modo que ainda há desafios práticos para a implementação desta promissora tecnologia em maior escala.
Considerações finais
A promessa da tokenização de bens imóveis é revolucionar o acesso ao enorme potencial econômico do mercado imobiliário e de seus ativos, que permanece tradicionalmente restrito a apenas uma parcela da sociedade.
A tecnologia blockchain e os smart contracts potencializam a redução dos custos de transação envolvendo bens imóveis, por meio da desburocratização e da diminuição ou mesmo eliminação de intermediário.
No Brasil, algumas das iniciativas mais recentes já implementadas estão ainda restritas ao âmbito do direito obrigacional, havendo necessária distinção entre a propriedade registral e a propriedade digital.
Atentando-se aos grandes desafios de regulação e de governança, resta saber se a promessa da tokenização será apenas mais um hype ou se de fato revolucionará o mercado imobiliário e os sistemas registral e notarial tal como pretende.
- Voshmgir, Shermin. Economia dos Tokens: como a Web3 está a reinventar a Internet e a relação entre os agentes económicos. Edição do Kindle: Token Kitchen, (edição portuguesa), 2021, p.31. ↩︎
- Ibidem, p. 32. ↩︎
- Tapscott, Don; Tapscott, Alex. Blockchain Revolution: como a tecnologia por trás do Bitcoin está mudando o dinheiro, os negócios e o mundo. São Paulo: Senai-SP, 2017, p. 34. ↩︎
- Ibidem, p.31. ↩︎
- Ibidem, p.34. ↩︎
- Voshmgir, Shermin. Economia dos Tokens: como a Web3 está a reinventar a Internet e a relação entre os agentes económicos, op. cit., p.227. ↩︎
- TEDxCERN. “Shermin Voshmgir: Web3, Blockchain, cryptocurrency: a threat or an opportunity?” Disponível em: https://www.ted.com/talks/shermin_voshmgir_web3_blockchain_cryptocurrency_a_threat_or_an_
opportunity ↩︎ - Voshmgir, Shermin. “Web3 is a social & economic operating system”. Disponível em: https://shermin.net/aa6140009e614bcc8c7ed8e3c43eff92 ↩︎
- Voshmgir. Shermin. “NFT Use Case: Tokenizing Real Estate”. Disponível em: https://medium.com/token-kitchen/nft-use-case-tokenizing-real-estate-e4f18e64df83 ↩︎
- Voshmgir, Shermin. Economia dos Tokens: como a Web3 está a reinventar a Internet e a relação entre os agentes económicos, op. cit., p. 382. ↩︎
- Ibidem, p. 383. ↩︎
- Exame Bússola. “Primeiro imóvel digital do Brasil conquista 400 proprietários em 120 dias. 07 de dezembro de 2022”. Disponível em: https://exame.com/bussola/primeiro-imovel-digital-do-brasil-conquista-400-proprietarios-em-120-dias/ ↩︎
- G1. “Idosa de 82 anos usa NFT para comprar 20% de apartamento no RS”. Publicado em: 23/10/2021. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2021/10/23/professora-de-82-anos-de-porto-alegre-compra-primeiro-apartamento-digitalizado-do-brasil.ghtml ↩︎
- Netspaces assinatura de patrimônio. Disponível em: https://www.netspaces.org/assine/#plans ↩︎
- G1. “Diarista de Porto Alegre compra imóvel com financiamento usando NFT como garantia”. Publicado em: 28/04/2022. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2022/04/28/diarista-de-porto-alegre-compra-imovel-com-financiamento-usando-nft-como-garantia.ghtml ↩︎
- Ribus Whitepaper PT. Disponível em: https://ribus.com.br/ ↩︎
- Voshmgir, Shermin. Economia dos Tokens: como a Web3 está a reinventar a Internet e a relação entre os agentes económicos, op. cit.,p. 391. ↩︎
- Ibidem, p. 388. ↩︎
- Amaral, Tiago; Rodrigues, Kaynã. “Non-Fungible Book: Introduction to NFTs – Free Complete Book”. Publicado em: 03/03/2023. Disponível em: https://mirror.xyz/tiagoamaral.eth/Qce_7MVDZBXW4wdMgFGqq1MTmT5dS50LIBUubFpSaFU ↩︎
- Jacomino, Sergio; Unger, Adriana J. “NFT’s – a tokenização imobiliária e o metaverso registral”. Disponível em https://www.migalhas.com.br/arquivos/2022/4/7CEF9CFF30BB7E_Tokenizacao.pdf ↩︎
- Ibidem. ↩︎
- Ibidem. ↩︎
- Ibidem. ↩︎
- Constituição Federal, art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. ↩︎
- Borges, Marcus Vinícius Motter (Org.). Curso de Direito Imobiliário. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 259. ↩︎
- Ibidem. ↩︎
- Ibidem. ↩︎
- Netspaces. Regulamento da Propriedade Digital v0.5. Disponível em: https://api-landing.netspaces.org/static/netspaces-%20Regulamento%20 da%20propriedade%20Digital%20-%20v05.pdf ↩︎
- Netspaces. “O que são imóveis digitais?” Disponível em https://www.netspaces.org/propriedade-digital/ ↩︎
- Provimento Nº 038/2021 – CGJ. Disponível em: https://www.tjrs.jus.br/static/2021/11/Provimento-038-2021-CGJ.pdf ↩︎
- Ibradim. “Série Negócios Imobiliários via Token e Aspectos Registrais”. Publicado em: 18/04/2022. Disponível em https://ibradim.org.br/programacao-serie-encontro-tokenizacao/?playlist=1d084385&video=e6219fa ↩︎
- Voshmgir, Shermin. Economia dos Tokens: como a Web3 está a reinventar a Internet e a relação entre os agentes económicos, op. cit.,p. 389. ↩︎
- Ibidem, p. 390. ↩︎
