
Conflitos de vizinhança: O “NIMBY”, a interferência em propriedade vizinha e o embargo de obra
Resumo
Com as grandes mudanças de cenário urbano decorrentes da construção de prédios e formação de condomínios, multiplicaram-se os possíveis problemas de vizinhança. Dois simples vizinhos podem desenvolver hostilidade mútua, pelo simples fato de conviverem próximos um ao outro. O artigo coloca em relevo o fenômeno denominado NIMBY (not in my backyard), enfatizando a importância da atuação preventiva do incorporador. A partir dessa questão, amplia-se a abordagem dos conflitos de vizinhança para situações de interferência em propriedade vizinha, a partir de uma análise dos principais posicionamentos nos Tribunais sobre perturbação sonora, passagem forçada e edificações com atirantamento. Por fim, examinam-se a Ação de Embargo de Obra e as medidas processuais que podem ser ajuizadas pelo proprietário e morador de um imóvel quando a utilização indevida de propriedade vizinha provoca interferências prejudiciais à sua segurança, ao seu sossego e à sua saúde.
Introdução
A vizinhança é um tema sensível e nem sempre tratado de modo expresso no direito imobiliário. A escolha de um imóvel, para moradia, trabalho ou lazer, costuma levar em conta a sua localização, o estilo do bairro, os arredores, as facilidades que porventura poderia proporcionar. No entanto, por melhor que seja a prognose sobre o imóvel, haverá sempre uma margem de contingência sobre quem serão os nossos vizinhos e sobre o quão amigáveis e cooperativas serão as nossas relações. É possível que vizinhos tenham uma surpreendente afinidade, mas também é possível que se manifestem muitas diferenças entre eles. Essa é uma realidade indiscutível na sociedade contemporânea, ainda mais intensa nas grandes cidades.
Mesmo com muitas semelhanças entre pessoas próximas, algumas diferenças entre elas podem transformar-se em um sentimento de estranheza e de hostilidade, fenômeno que foi denominado por Freud de “narcisismo das pequenas diferenças”.1 Nas análises de Freud, esse sentimento relaciona-se com a própria caracterização da identidade da pessoa e reverbera em suas relações familiares e perante uma comunidade. Ou seja, esse tipo de situação revela a forma com a qual os seres humanos comportam-se entre si, tal como na alegoria dos porcos-espinhos de Schopenhauer2, resgatada por Freud. Durante o inverno, os porcos-espinhos precisam aproximar-se para obter calor, mas igualmente precisam tomar uma certa distância entre eles.3
Um aspecto interessante desse fenômeno do narcisismo das pequenas diferenças é que, justamente, ele tende a manifestar-se nas relações de proximidade geográfica ou espacial, e não com aqueles que se encontram mais distantes. Por exemplo, uma pessoa que reside em uma metrópole no Brasil pode declarar não ter nenhuma desavença com comunidades distantes; porém, minúsculas diferenças podem levá-la a ter incômodos com seu próprio vizinho.
A questão não passou despercebida por Caio Mário da Silva Pereira, autor do projeto da Lei de Condomínio e Incorporações. Em um artigo publicado pela Revista Forense, em setembro-outubro de 1959, denominado “A propriedade horizontal, novo regime de condomínio”4, hoje considerado um marco na história do direito imobiliário brasileiro5, Caio Mário apresentou uma análise sobre a crise habitacional vivida na época, ocasionada por diversos fatores, entre os quais o movimento migratório de massas contínuas de população das zonas rurais para os centros urbanos em busca de melhores meios de vida e as duas Guerras dentro de meio século. Tais fatores, segundo ele, logo se depararam com a falta de construção de prédios capazes de proporcionar acomodação residencial ou comercial a toda a gente.
Conforme a avaliação de Caio Mário da Silva Pereira, “o mundo encolheu” com o progressivo adensamento populacional das cidades. Para resolver esse problema, foi necessário conceber uma nova técnica de construção, que permitiu o melhor aproveitamento dos espaços e a mais suportável distribuição de encargos econômicos, o qual, num paradoxo irônico, foi nomeada “propriedade horizontal”. Tal tipo de construção nada mais é do que o edifício de apartamentos, donde o indivíduo se torna proprietário de um plano horizontal – o que não era tolerado pelo Direito Romano, onde a propriedade do solo projetava-se “para o alto e ad astra, e se aprofunda chão a dentro “até o inferno (ad inferos)”6.
Com as grandes mudanças de cenário urbano decorrentes da construção de prédios e formação de condomínios, multiplicaram-se os possíveis problemas de vizinhança. Dois simples vizinhos podem desenvolver hostilidade mútua, pelo simples fato de conviverem próximos um ao outro. Nessas situações, há um fator psicológico a ser considerado, uma predisposição ao narcisismo das pequenas diferenças. Não obstante, o que pretendemos colocar em relevo neste artigo, através do fenômeno denominado NIMBY, é o fato de que essas diferenças podem ser motivadas por interferências práticas que podem vir a ser prejudiciais à vizinhança, tal como uma obra causadora de danos no prédio vizinho, ou ruídos que mitiguem o sossego do lar.
1. NIMBY – a importância da atuação preventiva do incorporador
NIMBY (“not in my backyard” ou “não em meu quintal”) é o termo utilizado para descrever uma oposição genérica a projetos de adensamento habitacional e comercial em determinadas áreas ou bairros de uma cidade que possam ser, de alguma maneira, prejudiciais ao entorno e aos residentes já estabelecidos. O fenômeno NIMBY representa a vizinhança existente, em face aos que pretendem residir no mesmo local ou instalar seus negócios.
O histórico dessa questão remete aos anos 1970, na cidade de Berkeley, Califórnia, Estados Unidos, onde o zoneamento unifamiliar foi inventado originalmente como uma “solução” para a proibição de certas categorias de inquilinos, transformando-se em uma ferramenta nacional de escolha, a qual terminou por se tornar em instrumento de discriminação racial e segregação urbana. Registros dão conta de que o aumento do zoneamento unifamiliar ocasionou também o aumento da população branca. As regulações e movimentos contra moradias multifamiliares fizeram preservar os bairros excludentes em detrimento do crescimento do espaço urbano7.
Em seu recente livro Survival of the City8, o professor de economia de Harvard, Edward Glaeser, esclarece que durante décadas as cidades acumularam regras e instituições que favorecem os insiders — moradores tradicionais, interessados na manutenção do status quo e na valorização de seus imóveis — em detrimento dos outsiders — novos moradores, interessados em moradia acessível e novas alternativas de trabalho, consumo e espaço urbano9.
Os chamados insiders costumam atuar através da força de associações de moradores organizadas com frentes de trabalho que buscam de inúmeras formas contestar as atividades do setor imobiliário. Exemplo disso é a mobilização de questões ambientais e urbanísticas com o objetivo de dificultar ou impossibilitar o surgimento de novos empreendimentos, com o consequente adensamento populacional de determinado bairro ou área. Nessas circunstâncias, a vizinhança organiza-se e utiliza-se de instrumentos e argumentos jurídicos para defender a sua perspectiva e os seus intuitos, muitas vezes ocultos: manter uma segregação espacial10, impedir o aumento populacional do bairro e evitar os “transtornos” causados por novas obras.
Seguindo a classificação de Edward Glaeser, o segundo grupo, dos outsiders, forma-se para instalar empreendimentos imobiliários novos em determinado bairro consolidado. Este seria o caso, por exemplo, de construtoras e incorporadoras que aprovam determinado projeto para construção de uma edificação de dezenas ou centenas de apartamentos em um bairro majoritariamente formado por grandes casas, por exemplo. Sua atuação é pautada no plano diretor das cidades, seus gestores costumam advogar pelo adensamento das áreas, pela flexibilização da legislação edilícia e pela multiplicidade de usos do tecido urbano11.
O conflito de interesses geralmente ocorre entre grupos que estão em posições opostas, como, por exemplo: proprietários de casas com grande área contra empreendimentos de apartamentos menores; pessoas mais abastadas em face de pessoas de classe média e baixa; conflito de gerações, onde pessoas mais jovens aceitam viver em apartamentos menores para usufruir de região mais privilegiada, o que muitas vezes não é aceito pelos mais velhos. Em alguns desses exemplos, é possível notar a existência de múltiplos componentes que constituem uma oposição juridicamente estruturada entre valores econômicos, sociais e culturais. É importante sublinhar que existem os instrumentos legais para exercer o direito de contestar e se opor a projetos novos em região específica.
No entanto, o abuso por parte de contestadores a novos projetos merece ser coibido12, pois muitas vezes são as verdadeiras causas sociais e ambientais que terminam por pagar a conta. Com o crescente movimento NIMBY em inúmeros bairros das grandes cidades, mostra-se temerário simplesmente ignorar o seu impacto nos projetos imobiliários novos.
Para Oriana Rey Tanaka, advogada e sócia da Visões da Terra – empresa social focada em oferecer soluções socioambientais que gerem impacto positivo para empresas, poder público e comunidades – a postura de incorporadoras que permanecem à distância dos movimentos NIMBYs termina por contribuir para o fortalecimento desses grupos, atraindo inclusive organizações mais estruturadas, como o Ministério Público13. Entre as possíveis consequências, destaca a advogada: (i) a possibilidade de medidas tendentes aos embargos de obras, uma vez que podem acionar o Poder Judiciário sobre uma eventual irregularidade no projeto; (ii) prejuízo de imagem, quando os reclamantes se utilizam da imprensa e mídias sociais para apresentarem aspectos negativos do empreendimento e do incorporador; e (iii) manifestações e barreiras físicas, quando os contrários aos empreendimentos fazem bloqueios no acesso da obra14.
Considerando-se as possíveis consequências da atuação dos insiders, segundo Oriana Tanaka, é recomendável que o empreendedor não se restrinja a simplesmente projetar, construir e vender as unidades, acreditando que ao final das vendas não há mais relação com aquela comunidade. Nesse sentido, é importante que o incorporador compreenda “o seu real papel social em contribuir genuinamente com o desenvolvimento ordenado daquela cidade”.15
Ao apresentar o empreendimento para a comunidade, é relevante que o empreendedor atue com empatia para com os atores da cidade, oferecendo mitigações aos impactos da obra, como, por exemplo, métodos de redução de poeira e ruído, além do alinhamento sobre as interferências nas vias públicas, que apesar de parecem ser simples questões, se desenham como detalhes valiosos nessa negociação.
Outras medidas também podem ser consideradas pelos incorporadores para reduzir o impacto das NIMBYs no entorno do novo projeto, como, por exemplo, contrapartidas à comunidade, tais como adoção de praças, construção de canteiros e floreiras, vagas de estacionamento, ciclovias, instalação de aparelhos públicos de academia e ginástica, manutenção do tapume de obra em harmonização com o bairro, limpeza constante das calçadas da obra, enfim, uma série de outros mecanismos que beneficiarão a todos os envolvidos e não terão impacto significativo no custo da obra.
Não sendo suficiente a atuação preventiva por parte do empreendedor, é possível que NIMBYs acionem o Poder Judiciário, por exemplo, através de Ação de Embargo de Obra, ou medidas similares, como veremos a seguir.
2. Situações de interferência na vizinhança – perturbação sonora, passagem forçada e edificações com atirantamento
A experiência comum mostra-nos que é corriqueira a existência de conflitos entre pessoas que residem em propriedades próximas (não necessariamente contíguas). Frequentemente, isso ocorre quando a satisfação do direito de um proprietário corresponde à restrição dos direitos dos vizinhos. Vejamos, por exemplo, o caso de Recurso Especial julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, sob relatoria do Ministro Sidnei Beneti, oriundo de ação indenizatória por danos morais e materiais, na qual um morador demandava em face da proprietária do apartamento imediatamente superior, sobre reclamações de longo período de infiltração em razão das falhas de impermeabilização causadas pela falta de manutenção de responsabilidade da vizinha16. No caso, a 3° Turma do STJ, por unanimidade, entendeu que não se pode considerar de somenos importância os constrangimentos e aborrecimentos experimentados em razão do prolongado distúrbio da tranquilidade nesse ambiente — “sobretudo quando tal distúrbio foi claramente provocado por conduta negligente da ré e perpetuado pela inércia e negligência desta em adotar providência simples, como a substituição do rejunte do piso de seu apartamento”.
Parece simples afirmar que algumas das interferências entre vizinhos precisam ser toleradas por eles para que exista um convívio minimamente harmônico. No entanto, a parte mais difícil é o entendimento de que o convívio harmônico exige uma perspectiva não apenas individual, mas também coletiva. Exatamente por isso, o Código Civil Brasileiro destina um Capítulo inteiro aos “Direitos de Vizinhança”, que podem ser definidos, segundo as palavras de Pablo S. Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, como o “conjunto de normas e princípios que disciplina a convivência pacífica e harmoniosa entre vizinhos, consistindo em ações ou omissões legalmente impostas aos proprietários e possuidores que compartilham a mesma vizinhança”17.
O conjunto de regras constantes entre os arts. 1.277 a 1.313 pode ser compreendido como um verdadeiro “código de vizinhança”, de conteúdo geral, para toda e qualquer relação entre moradores próximos, isto é, sem prejuízo de outras normas mais específicas constantes do ordenamento civil (como o caso do Capítulo destinado ao condomínio edilício, arts 1.331 a 1.358, do Código Civil). Entre os dispositivos desse “código de vizinhança”, estão, por exemplo, normas sobre o “uso anormal da propriedade” (artigos 1.277 a 1.281), correspondendo ao direito que o proprietário ou o possuidor de um prédio tem de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha. Nos termos do parágrafo único do art. 1.277, a proibição de interferências deverá observar a natureza da utilização, a localização do prédio, as normas de distribuição das edificações em zonas e os limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança.
Na hipótese de que um vizinho se sinta prejudicado nesse direito, poderá buscar salvaguarda do Poder Judiciário para inibir o outro de realizar as interferências, caso em que o juiz deverá analisar os elementos e critérios acima citados, além de outros que estiverem à sua disposição para fundamentar a decisão. Uma situação de interferência bastante comum entre vizinhos é da perturbação sonora.
Por exemplo: um hospital novo se instala em uma área residencial, observando todas as licenças concedidas pelo Poder Público para sua atividade. Porém, o prédio residencial imediatamente aos fundos passa a conviver com um ruído constante do gerador de energia do hospital (equipamento hospitalar imprescindível), localizado na parte de fundos, causando enorme desassossego aos moradores dos apartamentos voltados a referido equipamento ruidoso. Os vizinhos prejudicados poderão, por exemplo, postular em juízo medidas acústicas, incluindo obras, para que o hospital atenue os ruídos do gerador e faça cessar a interferência ao sossego.
Casos de perturbação estendem-se a situações muito peculiares. Em recente caso julgado em 2021 pela 17ª Câmara Cível do TJRS, as autoras da ação alegaram que sua vizinha mantinha no prédio ao lado um papagaio, animal silvestre que exige autorização do IBAMA para habitar em local adequado, e que a ave, por estar fora de seu habitat, causava inúmeros transtornos aos moradores vizinhos, em decorrência dos incessantes e estridentes gritos que gera, persistentes dia e noite, segundo o relato da petição inicial. Referiram a impossibilidade de descanso, estudo e tranquilidade em suas próprias moradias, causando inclusive problemas psicológicos e privação do sono. O juízo de primeira instância determinou, em sede liminar, a retirada do animal silvestre e a expedição de ofício ao IBAMA. Na sentença de primeira instância, foi confirmado que o papagaio não poderia retornar ao edifício, e ainda foi arbitrada indenização por danos morais às autoras da ação. Em segunda instância, a 17ª Câmara Cível do TJRS confirmou a retirada do animal, tendo, contudo, reduzido a indenização pela metade, sob o argumento proferido pela Desa. Relatora Rosana Broglio Garbin, de que a ré seria uma senhora idosa de 85 anos, que percebe benefício previdenciário, e que “ficou sem a companhia de animal que a acompanhava há anos, não sendo exagero dizer que a situação já ostenta algum viés pedagógico”18. Nota-se que, embora a decisão do recurso tenha demonstrado sensibilidade com as peculiaridades do caso para fins de diminuição da indenização devida, ponderou-se em favor do direito dos proprietários de fazer cessar a interferência ao sossego do lar.
Além das situações de perturbação sonora, outra interferência que pode causar desavenças diz respeito à passagem forçada. Como sublinham Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, a passagem forçada não se confunde com a servidão, na medida em que a primeira é direito de vizinhança com necessário pagamento de indenização, enquanto a segunda é direito real na coisa alheia (sem caráter obrigatório e com pagamento facultativo de verba compensatória)19.

Sobre a passagem forçada, o Código Civil dispõe em seu art. 1.285 que o dono do prédio que não tiver acesso à via pública, nascente ou porto, “pode, mediante pagamento de indenização cabal, constranger o vizinho a lhe dar passagem, cujo rumo será judicialmente fixado, se necessário”. Trata-se do “imóvel encravado”, cuja passagem deverá ser tolerada pelo vizinho “cujo imóvel mais natural e facilmente se prestar à passagem” (§1º, art. 1.285). A definição de “imóvel encravado” não deve limitar-se a imóveis sem nenhum acesso público, mas também àqueles com acesso insuficiente e inadequado20. Para Maria Helena Diniz, esse direito à passagem forçada funda-se no “princípio da solidariedade social” que preside as relações de vizinhança e no fato de ter a propriedade uma “função econômico-social que interessa à coletividade”21. Em outros termos, o direito à passagem forçada baseia-se no fato de que é preciso proporcionar ao prédio encravado uma via de acesso, sob pena de torná-lo improdutivo e inacessível, impedindo-o de utilização econômica.
Corroborando a doutrina de Maria Helena Diniz, vale mencionar recente julgamento da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça22 sobre caso envolvendo passagem forçada, no qual se entendeu a existência da posse ou do direito de propriedade, sem a possibilidade real e concreta de usar e fruir da coisa em razão do encravamento, o que significaria retirar do imóvel todo o seu valor e utilidade, violando o princípio da função social que informa ambos os institutos. Nesse sentido, reconheceu-se que a recusa à passagem ao possuidor do imóvel encravado leva ao exercício de direito de modo não razoável, “em desacordo com o interesse social e em prejuízo da convivência harmônica em comunidade, o que configura não apenas uso anormal da propriedade, mas também ofensa à sua função social, situação que não merece a tutela do ordenamento jurídico”.
Nota-se a importância que a Corte Superior dá à convivência harmônica em comunidade, determinando que cada um deva tolerar o exercício do direito de vizinhos, quando isso significa a plena realização da função social da propriedade.
Uma terceira situação do direito de vizinhança que ganha importância em nossos dias é a da utilização do espaço aéreo e também do subsolo. Sobre esse ponto, é bastante elucidativo decupar o disposto no art. 1.229 do Código Civil para se chegar a uma compreensão clara. Em sua parte inicial, referido dispositivo assenta que “a propriedade do solo abrange a do espaço aéreo e subsolo correspondentes, em altura e profundidade úteis ao seu exercício […]”. Já a sua parte final dispõe: “[…] não podendo o proprietário opor-se a atividades que sejam realizadas, por terceiros, a uma altura ou profundidade tais, que não tenha ele interesse legítimo em impedi-las”. Assim, como regra geral, por exemplo, não se pode impedir que um avião passe por sobre sua casa ou área, ou a colocação de cabos aéreos de energia elétrica ou, ainda, que perfurem o subsolo para a instalação de condutos subterrâneos de serviço de utilidade pública (CC, art. 1.286) ou de metrô. Nessas situações, salvo em casos de previsão legal excepcional, não há interesse em impugnar a realização de trabalhos que se efetuem a uma certa altura e a profundidade tal que não acarrete risco para a sua segurança.23
Seguindo essa lógica, como se resolve o caso das edificações em que se utiliza a técnica de engenharia na fase de fundações denominada “atirantamento”? Trata-se de técnica de execução de furos ao redor das fundações e injeção de “cordas de concreto”, chamados de tirantes, com objetivo de contenção da estrutura enquanto a obra é construída. Estes tirantes são instalados quase sempre no subsolo de prédios vizinhos, ficando enterrados em profundidade suficiente para, em regra, não atrapalhar a utilização do imóvel contíguo. Referidos tirantes, importante dizer, poderão ser retirados do subsolo do vizinho em momento futuro, pois serão inutilizados após o cumprimento de sua função de ancoragem.
O Superior Tribunal de Justiça já se deparou algumas vezes com a situação acima retratada (uso do subsolo pelo vizinho), e teve de julgar se a instalação de tais tirantes de concreto no subsolo vizinho interferia ou não no direito do lindeiro. Nesse sentido, vale citar o Recurso Especial nº 1.256.825/SP, de relatoria do Ministro João Otávio de Noronha, no qual se estabeleceu que a titularidade do imóvel, abrangendo solo, subsolo e o espaço aéreo correspondentes não é plena, “estando satisfeita e completa apenas em relação ao espaço físico sobre o qual emprega efetivo exercício sobre a coisa”24. Dessa forma, o proprietário do imóvel não tem o legítimo interesse em impedir a utilização do subsolo onde estão localizados os tirantes que se pretende remover, pois sobre referido espaço não exerce ou demonstra quaisquer utilidades.
No julgamento de caso semelhante, também pelo Superior Tribunal de Justiça, a Ministra Nancy Andrighi, relatora do Recurso Especial n° 1.233.852/RS, discorreu sobre o critério da utilidade – adotado pelo Código Civil como parâmetro definidor da propriedade do subsolo, limitando-a ao proveito normal e atual. Em sua interpretação, o legislador optou por proteger a função social da propriedade, de sorte que a extensão do subsolo a ela inerente deve ser delimitada pela utilidade que pode proporcionar ao proprietário, situação “incompatível com atos emulativos ou mesquinhos do proprietário, desprovidos de interesse ou serventia”.25
Como se denota da análise das questões e casos acima citados, os Tribunais confirmam a opção do legislador civil no sentido de mitigar o direito de propriedade para tolerar algumas interferências de vizinhos, desde que não agridam a utilidade do imóvel contíguo e que as medidas “invasivas” atendam à função social da propriedade, à imprescindível tolerância entre vizinhos, ao critério da utilidade, além de outros princípios gerais como os da razoabilidade e da proporcionalidade, homenageando a necessária convivência harmônica da sociedade.
3. O Embargo de Obra e medidas similares
Trataremos nesse último ponto das medidas judiciais cabíveis quando a interferência de imóvel vizinho se mostra ilegítima e não se resolveu pela via extrajudicial. Atualmente, a ação cabível intitula-se embargo de obra.
A partir da vigência do Código de Processo Civil de 2015, não há mais que se falar em “Ação de Nunciação de Obra”, procedimento especial previsto no código processual anterior, através do qual o proprietário ou possuidor podia propor ação judicial “a fim de impedir que a edificação de obra nova em imóvel vizinho lhe prejudique o prédio, suas servidões ou fins a que é destinado”, sendo prevista, inclusive, a decisão liminar do juízo. O Código de Processo Civil em vigor (CPC/2015) extinguiu esse procedimento, como consequência da desnecessidade de sua previsão especial, diante da modernização do direito processual. Ou seja, a extinção do procedimento não significa que o vizinho não poderá mais demandar o embargo de obra, tão somente que ele terá de submetê-lo em procedimento comum, como “Ação de Embargo de Obra”. Neste caso, o autor da ação poderá valer-se de pedido liminar para embargo da obra nociva, de acordo com as novas regras processuais, caso demonstre o preenchimento dos requisitos para a concessão da tutela de urgência de natureza antecipada (satisfativa), quais sejam, a probabilidade do direito (prejuízos à segurança do prédio vizinho ou descumprimento das normas públicas de uso e ocupação do solo urbano), bem como o perigo de dano (necessidade de intervenção imediata, sob pena de causar prejuízos imediatos e insegurança).
Seja na codificação processual anterior, seja na atual, a pretensão de embargar a obra sempre esteve fundada nas limitações ao direito de construir e nas relações de vizinhança, notadamente no art. 1.299 do Código Civil, de acordo com o qual o proprietário pode levantar em seu terreno as construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos. Além disso, o embargo de obra pode dar-se também quando há descumprimento de normas municipais de uso e ocupação do solo urbano26. Nos dizeres de Araken de Assis, o embargo de obra nova constitui uma ação pessoal, em bora fundada na propriedade e na posse, através da qual os respectivos legitimados obstam construções nocivas e ilegais em sua vizinhança27.
Dentro do direito do proprietário ou possuidor do prédio vizinho de demandar o embargo, pouco importará o vulto da obra objeto da ação, podendo ser tanto uma edificação nova, como uma mera reforma ou remodelação, ou até mesmo a abertura indevida de uma simples janela, bastando que consista em uma obra ilícita, proveniente da ação humana. O autor da ação poderá, na Ação de Embargo de Obra, cumular o pedido principal de suspensão da obra com outros, tais como: a cominação de pena pecuniária (astreintes) como uma forma de pressão para induzir o réu ao cumprimento do embargo (art. 537 do CPC/2015); a demolição, reconstrução ou a alteração da obra nova, com a finalidade de eliminar o prejuízo ao prédio do autor; como também a condenação do réu ao pagamento de indenização por danos materiais – como, por exemplo, os prejuízos patrimoniais causados no imóvel vizinho e o pagamento de aluguéis caso haja necessidade de desocupação do imóvel – e por danos extrapatrimoniais, caso assim estejam presentes os requisitos da responsabilidade civil.
Sobre a reparação de danos, além das disposições gerais da responsabilização civil presentes na codificação, é digno de registro o parágrafo único do art. 1.311 do Código Civil, segundo o qual o proprietário do prédio vizinho tem direito a ressarcimento pelos prejuízos que sofrer, não obstante haverem sido realizadas as obras acautelatórias. Ademais, o dispositivo subsequente, art. 1.312, determina que todo aquele que violar as proibições estabelecidas nesta Seção é obrigado a demolir as construções feitas, respondendo por perdas e danos.
Frise-se que a tutela do embargo de obra, principalmente a oriunda do pedido liminar (tutela de urgência), deverá ser fundada em prova substancial, com mínimo de verossimilhança, de que a construção nova está causando (ou tem grande potencial de causar) danos ao prédio do autor da ação. Não basta mera dedução ou pedido desamparado de provas suficientes ao embargo. Neste sentido, decidiu a 19ª Câmara Cível do TJRS em recente julgado: “não é possível deduzir apenas por fotografias que a obra erguida pelo réu seria a causadora das infiltrações no imóvel da autora e não estaria respeitando a necessária dilatação”28. Nessa situação, entendeu-se que o deferimento da tutela exige mínima certeza da alegada responsabilidade pelos danos no imóvel, sem a qual a mesma se mostraria precipitada.
Por outro lado, a 19ª Câmara Cível do TJRS entende que, uma vez comprovada a relação causal entre as escavações da obra nova e o desmoronamento do prédio vizinho, mediante prova pericial, o embargo da obra é devido: “[…] A prova pericial produzida na instrução da lide autoriza a conclusão no sentido da culpa exclusiva da parte ré em relação ao desmoronamento do pavilhão de propriedade da parte autora. As escavações realizadas pelo réu ocasionaram os danos no pavilhão do autor”29. Também é concedido o embargo nos casos em que a obra nova não atende os recuos legalmente previstos, ou exista comprovado risco que uma sacada construída ofereça insegurança ao prédio vizinho, como se observa em julgado da 20ª Câmara Cível do TJRS30.
Considerações finais
No âmbito da vizinhança, ocorrem os mais diversos fenômenos capazes de causar desentendimentos entre vizinhos. As situações vão desde simples obras de abertura de janela indevida no prédio vizinho, passando por interferências ao sossego através das mais variadas formas, bem como obras ilícitas, chegando até verdadeiros movimentos organizados (NIMBY) para fulminar novos empreendimentos. A oposição a construções novas, quando legítima, deve estar fundamentada em eventual descumprimento da lei ou das demais normas públicas, as quais são de observação obrigatória a todo aquele que pretende erigir obra nova, como os planos diretores e as normas ambientais, por exemplo.
A legislação e os precedentes que analisamos têm o objetivo de tornar a vida entre vizinhos a mais harmônica possível. Se é verdade que hoje em dia a maioria das pessoas nas cidades grandes residem em condomínios edilícios, é também verdade que as relações entre vizinhos – em construções lindeiras – necessitam de regulação. O direito de vizinhança existe para disciplinar a convivência pacífica e harmoniosa entre vizinhos, mesmo aqueles que não vivem em condomínio, de modo a neutralizar eventuais interferências indevidas praticadas por um dos vizinhos contra o outro ou contra sua propriedade, ou seja, o uso anormal da propriedade. A tolerância e a empatia entre os que residem próximos devem estar sempre presentes para que exista um convívio minimente pacífico.
Eventualmente, teremos que tolerar que um vizinho adentre em nossa propriedade para consertar o seu imóvel, para ter passagem ou mesmo que utilize nosso espaço aéreo ou subsolo, desde que em altura e profundidade que não sejam mais úteis à nossa propriedade ou quando não temos interesse legítimo para impedi-lo.
Não sendo suficiente o ritual amistoso entre os vizinhos, é direito daquele que se sentir prejudicado o acesso ao Poder Judiciário, quando se fizer necessário para fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização indevida de propriedade vizinha. Aos Tribunais, por sua vez, cumpre a difícil tarefa de deliberar para restituir a harmonia nas relações entre os vizinhos, especialmente nas situações de embargo de obra, deferindo-o quando houver provas suficientes acerca da insegurança da obra e dos prejuízos causados a vizinhos.
- Freud, Sigmund. “El tabú de la virgindad (Contribuciones a la psicología del amor, III [1918])”. Obras completas. Vol. XI. Trad. José L. Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu, 2012, p. 195. Para um aprofunda
mento sobre o tema, consultar: Reino, Luiz Moreno Guimarães; Endo, Paulo Cesar. “Três versões do narcisismo das pequenas diferenças em Freud”. Trivium – Estudos Interdisciplinares, vol. 3, nº 2, 2011. ↩︎ - Schopenhauer, Arthur. Parerga y Paralipómena II. Trad. Pilar López de Santa María. Madrid: Trotta. 2009, p. 665. ↩︎
- Freud, Sigmund. “Psicología de las masas y análisis del yo [1921]”. Obras completas. Vol. XVIII. Trad. José L. Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu, 2012, p. 96. ↩︎
- Pereira, Caio Mário da Silva. “A propriedade horizontal, novo regime de condomínio”. Rio de Janeiro: Revista Forense: vol. 185, 1959, p. 52-68. ↩︎
- Ver em: Santos, Lourdes Helena Rocha dos; Castro, Fabio Caprio Leite de. “A evolução histórica e os novos horizontes da incorporação imobiliária e do condomínio edilício no direito brasileiro”, Revista Sín
tese Direito Imobiliário, vol. 29, 2015, p. 73-102. Igualmente disponível em: https://santossilveiro.com.br/artigo.php?c=6ab530fd-1105-4100-a 000-8dcf0a07d211 ↩︎ - Pereira, Caio Mário da Silva. “A propriedade horizontal, novo regime de condomínio”, op. cit., p. 53. ↩︎
- Owens, Darrell. “Single-family zoning must be eliminated to end the racist origins of Berkeley’s zoning”. Publicado em 18/02/2021. Disponível em:
https://www.berkeleyside.org/2021/02/18/opinion-to-end-racist-origins-of-berkeley-cas-zoning-single-family-zoning-must-end. ↩︎ - Glaeser, Edward. Survival of The City: Living and Thriving in an Age of Isolation. London: Basic Books, 2021. ↩︎
- Ibidem, p. 14. Sobre o tema, ver também: Barbosa, Andrey et al. “NIMBY e YIMBY: duas visões da cidade”. Publicado em 14/05/2022. Disponível
em: https://www.archdaily.com.br/br/980769/nimby-e-yimby-duas-visoes-da-cidade ↩︎ - Também chamada de “segregação socioespacial”, “refere-se à periferização ou marginalização de determinadas pessoas ou grupos sociais por fatores econômicos, culturais, históricos e até raciais no espaço das cidades. Ver: Silva, Manoel Mariano Neto et al. “Segregação socioespacial: os impactos das desigualdades sociais frente a formação e ocupação do espaço urbano”. Revista Monografias Ambientais (UFSM), vol. 15, nº 1, 2016, p. 256-263. ↩︎
- Barbosa, Andrey et al. “NIMBY e YIMBY: duas visões da cidade”, op. cit. ↩︎
- Esse tema foi especialmente debatido no Painel “Nimby War, os empreendimentos e a vizinhança”, realizado no 5º Congresso Ibradim de Direito Imobiliário, de 18 a 19 de agosto de 2022, no Rio de Janeiro. ↩︎
- Miranda, Felipe. Entrevista com Oriana Rey Tanaka. “Como Nimbys podem interferir no desenvolvimento de projetos imobiliários”. Publicado em 23/02/2021. Disponível em https://adit.com.br/como-nimbys-podem-interferir-no-desenvolvimento-de-projetos-imobiliarios/ ↩︎
- Ibidem. ↩︎
- Ibidem. ↩︎
- REsp nº 1.313.641/RJ, Relator Ministro Sidnei Beneti, 3ª Turma, DJe de 29/6/2012. ↩︎
- Gagliano, Pablo Stolze; Pamplona Filho, Rodolfo. Manual de direito civil. 3ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 1221. ↩︎
- Apelação Cível nº 50088223520178210001, 17ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rosana Broglio Garbin, Julgado em 28-10-2021. ↩︎
- Gagliano, Pablo Stolze; Pamplona Filho, Rodolfo. Manual de Direito Civil, op. cit., p. 1224. ↩︎
- Nessa linha, estabelece o Enunciado nº 88 da I Jornada de Direito Civil: “Art. 1.285: O direito de passagem forçada, previsto no art. 1.285 do CC, também é garantido nos casos em que o acesso à via pública
for insuficiente ou inadequado, consideradas, inclusive, as necessidades de exploração econômica”. ↩︎ - Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Direito das coisas. Vol. 4. 26ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 328-329. ↩︎
- REsp nº 2.029.511/PR, 3ª Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, DJe de 16/3/2023. ↩︎
- Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro — Direito das Coisas, op. cit., p. 132. ↩︎
- REsp nº 1.256.825/SP, 3ª Turma, Relator Ministro João Otávio de Noronha, DJe de 16/3/2015. ↩︎
- REsp nº 1.233.852/RS, 3ª Turma, Relatora Ministra Nancy Andrighi, DJe de 1/2/2012 ↩︎
- “A ação de nunciação de obra nova à disposição do proprietário ou do possuidor tem por escopo evitar que a obra em construção prejudique o prédio já existente. Esse prejuízo, que constitui o fundamento maior da referida demanda, pode se dar tanto pelo descumprimento das normas do direito da vizinhança quanto das normas municipais de uso e ocupação do solo urbano, haja vista a inexistência de restrição
no inciso I do art. 934 do Código de Processo Civil” (REsp nº 126.281/PB, 4ª Turma, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 18/12/1998, p. 361). ↩︎ - Assis, Araken de. “Nunciação de obra nova”. Revista de Processo, vol. 128, 2005, p. 01. ↩︎
- Agravo de Instrumento nº 50279112320228217000, 19ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Eduardo João Lima Costa, Julgado em: 14-10-2022 ↩︎
- Apelação Cível nº 50003452520168210044, 19ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Eduardo João Lima Costa, Julgado em: 15-04-2021. ↩︎
- Apelação Cível nº 50032903620168210027, 20ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos Cini Marchionatti, Julgado em: 29-06-2022. ↩︎
