
Incompatibilidade entre a recuperação judicial e a SPE com patrimônio de afetação: Alternativas existentes em face da legislação vigente
Resumo
Há no mercado imobiliário as empresas titulares de diversas incorporações imobiliárias e as sociedades cujo objeto social é o desenvolvimento de um empreendimento específico, constituídas em forma de SPE (Sociedade de Propósito Específico), e que, geralmente, atuam sob o regime do patrimônio de afetação. Este modelo organizacional confere, como efeito prático, a incomunicabilidade e autonomia do patrimônio afetado, possibilitando que prossiga sua atividade livre de eventuais efeitos de uma crise vivenciada pelo grupo empresarial. No entanto, em um cenário de instabilidade do incorporador imobiliário, isto é, do grupo empresarial ao qual a SPE é integrante, avalia-se a incompatibilidade entre o instituto da recuperação judicial e a SPE com patrimônio de afetação. Para tanto, são examinadas as premissas básicas sobre a figura da SPE na atividade imobiliária. O estudo adentra, então, ao seu objetivo principal, com a apresentação dos fundamentos, tanto na doutrina, como na jurisprudência, que levam à conclusão de que o instituto da recuperação judicial e a SPE com patrimônio de afetação são incompatíveis entre si. Por fim, abordamos as alternativas existentes na legislação no contexto de crise econômico-financeira do incorporador imobiliário, em decorrência do não entrelaçamento dos institutos.
Introdução
O debate sobre a incompatibilidade entre a recuperação judicial e a SPE com patrimônio de afetação ganhou bastante destaque nos últimos anos. Isto porque o mercado brasileiro vem enfrentando desafios significativos, tendo sido duramente afetado pela crise econômica que se abateu sobre o país pelos reflexos da pandemia da Covid-19, que foi classificada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como a “maior crise sanitária da nossa época”1 e influenciou significativamente no panorama da recuperação judicial. Apesar da melhora ensaiada, a trajetória de algumas empresas brasileiras no ano de 2023 ficou marcada pelo termo “recuperação judicial”, pois o número de pedidos de recuperação judicial no Brasil teve uma alta de 70%2 neste ano em comparação com 2022. Os pedidos de recuperação judicial foram protocolados por grandes nomes corporativos no país, que atuam em diversas áreas do mercado, revelando que o cenário de instabilidades e incertezas ainda é um desafio para os empreendedores.
No cenário de crise econômico-financeira do incorporador imobiliário, ao contrário da falência, que contém determinação legal expressa na Lei nº 4.591/1964 para excluir o patrimônio de afetação do processo falimentar, o mesmo não ocorre na recuperação judicial, que não recebeu esse tratamento legislativo. Assim, na busca por alternativas para a reestruturação da atividade empresarial, surgem dúvidas sobre a possibilidade (ou não) de inclusão da SPE com patrimônio de afetação no processo de recuperação judicial do grupo empresarial, causando grande discussão doutrinária e jurisprudencial sobre o tema.
Feitas estas primeiras considerações, na esteira do atual posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, que afastou completamente a possibilidade de a SPE com patrimônio de afetação participar do processo de recuperação judicial do grupo empresarial ao qual é integrante, passamos, então, a analisar a incompatibilidade criada pela Lei de Condomínios e Incorporações (Lei nº 4.591/1964) com o instituto da recuperação judicial regido pela Lei de Recuperação Judicial e Extrajudicial e de Falência (Lei nº 11.101/2005), bem como quais são as alternativas legislativas no contexto de crise econômico-financeira do incorporador imobiliário.
1. A sociedade de propósito específico (SPE) na incorporação imobiliária
A incorporação imobiliária é um instituto jurídico que se caracteriza pela venda de imóvel na planta, com pagamento antecipado de parte do preço de aquisição e, dada essa configuração, a atividade imobiliária envolve riscos próprios3. É justamente por isso que a sociedade de propósito específico, também chamada de SPE, tornou-se um importante mecanismo estruturante das incorporações imobiliárias, através do qual constitui-se uma nova pessoa jurídica, que tem como objeto social exclusivo a execução de um determinado empreendimento, com autonomia patrimonial em relação aos demais empreendimentos desenvolvidos pelo incorporador.
Este modelo organizacional ganhou bastante uso após o caso da falência da Encol, como forma de garantir a segregação patrimonial do empreendimento quando se verificou que a legislação aplicável aos contratos imobiliários não trazia a segurança necessária para aquisição de unidades imobiliárias ainda em fase de construção.
Apesar de a SPE atualmente ser bastante utilizada no mercado de incorporações imobiliárias, sua origem advém da previsão contida na Lei nº 11.079/2004, que instituiu as normas para licitação e contratação de parcerias público-privadas no âmbito da administração pública (PPPs), a qual dispõe, no seu art. 9º, que “antes da celebração do contrato, deverá ser constituída sociedade de propósito específico, incumbida de implantar e gerir o objeto da parceria”.
Trata-se de um modelo de negócio com origem em institutos norte-americanos, como a joint venture4, por meio do qual ocorre a união de empresas, proporcionando a criação de uma nova empresa para executar objetivos específicos e determinados em todos os campos possíveis de negócios.
Certo é que a constituição de uma SPE, em especial no setor imobiliário, oferece diversas vantagens aos envolvidos, pois permite a concentração de recursos financeiros e conhecimentos especializados em um negócio específico, visando trazer maior segurança jurídica e reduzir riscos para os seus sócios, investidores, adquirentes e demais terceiros interessados.
Além disso, a independência administrativa, obrigacional e fiscal da SPE também garante maior agilidade na obtenção de financiamentos perante os agentes financeiros, sobretudo porque os ativos desta nova pessoa jurídica poderão ser avaliados de forma apartada, e por ser uma criação tão recente, em geral, não encontrará dificuldades desde a emissão de certidões negativas até o registro do memorial de incorporação.
De natureza essencialmente contratual, o legislador definiu a figura da SPE de forma implícita no capítulo “Da Sociedade”, no parágrafo único do art. 981 do Código Civil, ao prever que “a atividade pode restringir-se à realização de um ou mais negócios determinados”.
Em outras palavras, a SPE não configura um tipo societário autônomo, e sua constituição obrigatoriamente se dará sob uma das formas já previstas pela legislação, de modo que as suas características serão dadas a partir da definição do seu tipo societário e, uma vez constituída, passará a ter personalidade jurídica própria, com direitos e obrigações, que a distinguem dos demais empreendimentos do incorporador.
No setor imobiliário, como normalmente acontece, a SPE, ligada a uma holding, compõe um grupo empresarial, e o resultado econômico obtido a partir do desenvolvimento de um empreendimento será revertido em favor dos sócios da empresa controladora ou seus investidores após a extinção da sociedade, mediante a conclusão das obras, entrega das unidades imobiliárias e assunção de eventuais responsabilidades remanescentes.
Por isso, a constituição da SPE está umbilicalmente ligada ao lapso temporal em que a obra está em andamento, até o cumprimento das suas obrigações relacionadas ao empreendimento específico. Assim, concluídas as obras do empreendimento desenvolvido pela incorporadora, cumpridas todas as suas obrigações e tendo sido averbado nas matrículas a conclusão e individualização das unidades perante o Registro de Imóveis competente, ocorre a extinção do patrimônio de afetação.
Muito embora esta modelagem seja uma prática consagrada no mercado imobiliário e que a SPE possa ser considerada uma fórmula adequada para o desenvolvimento autônomo de determinado projeto, não se ignora que a limitação do seu objeto social a um único empreendimento, por si só, não confere eficácia suficiente para excluir com completude os riscos atrelados ao grupo empresarial que a controla.5
É neste contexto, então, que o legislador entendeu a necessidade de disciplinar mecanismos jurídicos de proteção, criando, por meio da Lei nº 10.931/2004, a figura do patrimônio de afetação, o qual constituiu um marco importante para a segurança jurídica na aquisição de imóveis diretamente na planta. Sobre o tema, a doutrina de Scavone6 explica que o patrimônio de afetação consiste na separação do terreno e dos direitos da constituição a ele vinculados, do patrimônio do incorporador, que, por opção deste, passa a ser destinado exclusivamente à consecução da própria incorporação em proveito dos futuros adquirentes, garantindo, igualmente, as obrigações exclusivamente ligadas à realização do empreendimento.
Em linhas gerais, caso o incorporador opte por este regime no ato de registro da incorporação imobiliária, pode-se dizer que a afetação patrimonial terá a função primordial de assegurar a segregação do patrimônio do empreendimento específico, que possuirá receita própria, proveniente da alienação das unidades e/ou do financiamento específico, a fim de que determinado empreendimento não pague pelos riscos dos demais negócios do incorporador, objetivando, ao final, a conclusão das obrigações com a obra e a entrega das unidades para a sua efetiva extinção.
Sinaliza-se que a partir dessa mudança legislativa, embora a constituição de uma nova pessoa jurídica para averbação do patrimônio de afetação à determinada incorporação imobiliária não seja obrigatória, as instituições financeiras, não raras vezes, condicionam a concessão de financiamentos imobiliários a uma SPE de incorporação imobiliária que constitua um patrimônio de afetação.7
No entanto, é fundamental considerar que a instituição do patrimônio de afetação não é, de forma alguma, uma obrigação para o incorporador. O regime de afetação tem caráter opcional, que por sua vez será recompensado pelo legislador através de uma série de vantagens, destacando-se, como exemplo, a aplicação do RET (Regime Especial de Tributação) instituído pela Lei nº 10.931/2004, cuja prática tem revelado grande adesão ao instituto.
Justamente em razão da liberalidade do incorporador para instituir ou não o regime de patrimônio de afetação à SPE, é que entra em debate a discussão acerca da possibilidade de inclusão da SPE com patrimônio de afetação no pedido de recuperação judicial na hipótese de se instalar uma crise econômico-financeira do grupo empresarial.
Para Fábio Ulhoa Coelho8, a crise da empresa nem sempre está ligada à má-administração ou ao cometimento de atos ilícitos dos sócios e/ou administradores, e isso implica dizer que a causa da crise também se dá por fatores externos de economia. Na prática, mesmo diante de todos os mecanismos estruturados para garantir o sucesso de determinado empreendimento – por meio da constituição da SPE e da instituição do patrimônio de afetação –, pode acontecer que a inadimplência dos adquirentes, o aumento do número de distratos, somados a outros fatores, como, por exemplo, elevações dos custos, desaquecimento do mercado, impactem negativamente na saúde financeira da atividade do incorporador.
Em situações desta espécie, não é incomum que o grupo empresarial, composto por diversas SPEs, seja com ou sem patrimônio de afetação, busque por alternativas para a superação do momento de instabilidade, sendo, uma delas, pedir sua própria recuperação judicial.
Diante destas constatações, pretende-se avaliar a incompatibilidade existente entre a recuperação judicial e a SPE com patrimônio de afetação, para, ao final, entender quais são as alternativas existentes em face da legislação vigente.

2. Incompatibilidade entre o instituto da recuperação judicial e a SPE com patrimônio de afetação
O ponto de interrogação inicial que paira sobre o tema se dá justamente se a atividade de incorporação imobiliária em si é compatível com o procedimento de recuperação judicial, pois a Lei nº 11.101/2005 não tratou sobre o tema.
Como já exposto, a atividade imobiliária está geralmente estruturada por um grupo empresarial, controlada por uma holding, que por sua vez é composto por diversas SPEs constituídas com ou sem patrimônio de afetação para o desenvolvimento de cada empreendimento específico. Sendo assim, em um cenário de instabilidade financeira, o pedido de recuperação judicial termina por ser realizado pelo grupo empresarial, que, a princípio, incluiria todas as suas SPEs atuantes.
Não há dúvida que, no que diz respeito à falência, a Lei nº 11.101/2005, no art. 119, deixa muito claro os efeitos da decretação da falência sobre as obrigações do devedor (Capítulo V, Seção VIII, “Da Falência”), no sentido que os patrimônios de afetação, constituídos para cumprimento de destinação específica, obedecerão ao disposto na legislação respectiva, permanecendo seus bens, direitos e obrigações separados do falido até o advento do respectivo termo ou até o cumprimento de sua finalidade, ocasião em que o administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer.
Se, por um lado, o legislador determinou que a falência ou insolvência do incorporador será tratada conforme a lei especial e o art. 31-F da Lei nº 4.591/1964 (Lei de Incorporações) consolidou que não atingem o patrimônio de afetação constituído – não integrando a massa concursal o terreno, as acessões de demais bens, direitos creditórios, obrigações e encargos objeto da incorporação –, o mesmo não ocorre com relação a recuperação judicial.
Notadamente, a lei não trata sobre o patrimônio de afetação nas disposições relativas à recuperação judicial da empresa, seja na esfera judicial, seja na extrajudicial. Ao mesmo tempo, a legislação também não traz vedação expressa quanto à submissão do incorporador imobiliário ou a SPE ao regime de recuperação judicial.
Sob esta perspectiva, considerando que na lei não há qualquer impedimento para que o incorporador imobiliário, ou seja, o grupo empresarial, busque a superação da crise econômico-financeira no âmbito da recuperação judicial, a controvérsia levada à apreciação pelo Poder Judiciário guarda relação com a possibilidade de submissão, ou não, especificamente, da SPE com patrimônio de afetação ao processo de recuperação judicial do grupo empresarial.
Em se tratando de SPE com patrimônio de afetação, é primordial relembrar que a ratio da criação do instituo do patrimônio de afetação é trazer segurança aos adquirentes e ao mercado, e que um dos aspectos que proporciona essa maior segurança e confiança é justamente o regime de incomunicabilidade instituído pela legislação. Com efeito, isso significa dizer que, se o incorporador se encontra em cenário de crise financeira, o simples fato de não se permitir nenhum tipo de ingerência sobre o patrimônio de afetação, impossibilita que sobre ele se projetem os efeitos da recuperação judicial, conduzindo, então, à ideia inicial de que estes institutos jurídicos são incompatíveis entre si.
Trata-se de uma questão jurídica sensível e que foi enfrentada, pela primeira vez, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento do Recurso Especial 1.958.062/RJ, interposto por um grupo empresarial que atua na atividade imobiliária. No caso em questão, o referido grupo empresarial interpôs o Recurso Especial visando reformar o acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que havia determinado a exclusão de todas as SPEs com patrimônio de afetação do processo de recuperação judicial.
Ao apreciar o Recurso Especial, os Ministros da 3ª Turma do STJ, sob a Relatoria do Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, concluíram que, com relação à submissão de sociedades incorporadoras ao regime de recuperação judicial, a Lei nº 11.105/2005 não trouxe vedação expressa. Contudo, tratando-se especificamente da SPE com patrimônio de afetação, há incompatibilidade com a recuperação judicial, pois, conforme destacou o Min. Relator, pensar de modo diverso conduziria ao indesejável enfraquecimento dos efeitos esperados e efetivamente concretizados desde a edição da Lei nº 10.931/2004, inserida no ordenamento jurídico com vistas a conferir maior segurança, estabilidade e desenvolvimento ao ramo da incorporação imobiliária, com inegáveis benefícios para todos os envolvidos.
O precedente representa um significativo marco para a discussão aventada nos Tribunais, pois a Corte Superior fixou entendimento pela impossibilidade de submissão das SPEs com patrimônio de afetação ao processo de recuperação judicial do grupo empresarial. Destacou-se, ainda, que o papel das SPE com patrimônio de afetação na recuperação judicial do grupo à qual pertence está restrito ao repasse de eventuais sobras após a extinção do patrimônio afetado, pois somente após este momento poderão ser utilizados recursos para o pagamento e outros credores não vinculados ao patrimônio de afetação.
Sob o ponto de vista da problemática, surgem as seguintes perguntas: o entendimento exarado pelo Superior Tribunal de Justiça determinou a exclusão do patrimônio afetado nos empreendimentos desenvolvidos diretamente pela própria holding (isto é, quando não existe SPE constituída) da recuperação judicial? Ou determinou apenas a exclusão das SPEs com patrimônio de afetação da recuperação judicial do grupo empresarial?
Extrai-se do julgado9, que o STJ deliberou a respeito da incomunicabilidade entre a SPE com patrimônio de afetação e a recuperação judicial do grupo empresarial, deixando de se pronunciar quanto à exclusão do patrimônio afetado nos empreendimentos desenvolvimentos pela própria holding, pois a matéria não foi objeto do recurso interposto. Logo, podemos dizer que, apesar de a matéria ter sido enfrentada pelo STJ, a parametrização sobre a incompatibilidade entre os institutos da recuperação judicial e o patrimônio de afetação guarda relação exclusivamente com as SPEs com patrimônio de afetação.
Ante tal posicionamento, sem pretender esgotar o tema, ainda muito recente, para melhor compreender a razões que justificam a incomunicabilidade entre os institutos, é necessário ter em mente que quando uma atividade empresarial enfrenta uma crise, o foco do empresário é buscar soluções para a renegociação com seus credores, tudo para alcançar a reestruturação do negócio e resolver a situação de crise. No entanto, quando tais medidas não são suficientes, desde que preenchidos alguns requisitos legais10, o empresário poderá socorrer-se ao Poder Judiciário como sujeito responsável para acompanhamento dos procedimentos legalmente previstos para soerguimento da empresa.
Dentre os institutos criados pelo Estado para viabilizar a reestruturação da empresa, estão a recuperação judicial e a extrajudicial. Com o advento da Lei nº 11.101/2005 (LREF), observou-se a criação de sistemas para fornecer mecanismos e instrumentos para superação da crise vivenciada pela empresa, mediante a aprovação de um plano de recuperação, cujo conteúdo será livre e poderá ser amplamente negociado com os seus credores, bem como a nomeação do administrador judicial, auxiliar do juízo, o qual representará os interesses das partes, entre outras medidas prevista na legislação.
O instituto da recuperação judicial possui como base o princípio da função social da empresa, que visa a superação de crise e a manutenção da fonte produtora, do emprego, dos trabalhadores e, é claro, dos interesses dos credores, a teor do que dispõe o art. 47 da LREF.
Recentemente, a LREF sofreu algumas alterações com a promulgação da Lei nº 14.112/2020, que, primordialmente, visam favorecer o desenvolvimento dos institutos da recuperação judicial e extrajudicial das empresas. Todavia, apesar das diversas alterações legislativas advindas, não sobrevieram dispositivos legais relacionados à possibilidade de submissão do instituto do patrimônio de afetação, ainda que parcialmente, ao processo de recuperação judicial do incorporador.
De outro lado, a Lei nº 10.931/2004, que alterou a Lei de Condomínios e Incorporações (Lei nº 4.591/1964) e instituiu o patrimônio de afetação, foi muito clara ao consolidar que o acervo patrimonial que compõe uma incorporação imobiliária é passível de afetação, por meio da qual o conjunto de direitos e obrigações fica segregado do patrimônio geral, tendo a exclusiva finalidade de concluir a obra e entregar as unidades autônomas aos adquirentes11. Também consolidou que a afetação condicionará o exercício dos poderes do incorporador, vinculando-o ao cumprimento da função social da incorporação afetada.12
Extrai-se dessa breve descrição que a legislação previu microssistemas incompatíveis entre si. Isto porque, enquanto o processo de recuperação judicial tem a finalidade de fornecer meios que permitam a superação da crise e a manutenção da atividade empresarial, o patrimônio de afetação, até que seja cumprida a função específica a que foi constituído, conserva sua autonomia e integridade diante de uma recuperação judicial, aplicando-se a disciplina específica para o exercício dos direitos dos credores e da própria administração do patrimônio de afetação.13
Ao passo que no processo da recuperação judicial do grupo empresarial a administração e fiscalização do cumprimento do plano de recuperação aprovado pela assembleia de credores será conduzida por um administrador judicial, conforme disposto na Seção III, da LREF, a administração do patrimônio de afetação competirá sempre à Comissão de Representantes, tal como preceitua a legislação específica. Sob essa perspectiva, verifica-se que este é um dos pontos mais significativos quando se fala da incompatibilidade entre estes institutos jurídicos.
Outro ponto, que também manifesta a incompatibilidade entre os institutos, tem relação com a elaboração de um plano de recuperação, especialmente porque os valores decorrentes dos contratos de alienação das unidades autônomas, assim como as obrigações vinculadas à execução da obra e a entrega dos imóveis são insuscetíveis de novação. Daí que, conforme explica Marcelo Barbosa Sacramone, diante do regime especial do patrimônio de afetação, “suprime-se a autonomia do incorporador em relação aos bens e obrigações contraídas em razão do empreendimento14”, impedindo que qualquer alteração na relação jurídica envolvendo os credores seja realizada por ato voluntário do incorporador.
Na mesma linha, para Fabio Ulhoa Coelho15, quando uma incorporadora opta pela constituição de um patrimônio de afetação, para levar adiante determinado empreendimento imobiliário, ela toma uma decisão empresarial que, como qualquer outra, traz-lhe vantagens e limitações. Sendo assim, como consequência da decisão empresarial de constituição do patrimônio de afetação, decorre a indisponibilidade dos bens afetados, podendo-se concluir, portanto, que aí está a impossibilidade de submissão da SPE com patrimônio de afetação ao processo de recuperação judicial.
Aspecto interessante na recuperação judicial e que também revela a incomunicabilidade entre os institutos é que, na hipótese de o plano de recuperação judicial do incorporador não ser aprovado ou não ser cumprido pela empresa recuperanda, a recuperação judicial deverá ser convolada em falência. Ocorre que, nos casos de falência do incorporador imobiliário, o legislador foi taxativo ao prever qual o procedimento será seguido pelos adquirentes de unidades no empreendimento afetado, de modo que o patrimônio de afetação não se sujeitará ao regime falimentar.
Em linhas gerais, a distinção do bem jurídico que cada um destes institutos visa tutelar e o âmbito em que se busca a solução de eventual crise econômico-financeira do incorporador imobiliário justificam, na sua essência, a incompatibilidade entre eles.
Nesse sentido, é com base nesses principais fundamentos que os Tribunais vêm confirmando o isolamento do patrimônio de afetação, especialmente quando se trata de uma SPE, em relação à recuperação judicial do grupo empresarial.
Observados esses pontos, a doutrina de Melhim Chalhub16 conceitua que o papel das SPEs com patrimônio de afetação na recuperação judicial do grupo empresarial é distribuir eventuais saldos residuais depois de cumprir com seu objeto social integralmente, tal como foi assentado pelo STJ ao analisar a matéria.
Tal entendimento também foi aprovado na VIII Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, na forma do Enunciado nº 628, segundo o qual o patrimônio de afetação não se submente à recuperação judicial da controladora e prosseguirá sua atividade com autonomia e incomunicável em relação ao patrimônio geral, aos demais patrimônios de afetação por ela constituídos e ao plano de recuperação judicial até que extintos.
Não há dúvida, portanto, que a jurisprudência vem se posicionando sobre o tema, porém ainda é necessário um aprimoramento desses entendimentos, em especial da legislação vigente acerca do tratamento do patrimônio afetado e da SPE com patrimônio afetação no processo de recuperação judicial do incorporador imobiliário.
Por fim, neste cenário, examina-se quais são as alternativas existentes em face da incompatibilidade entre os institutos jurídicos.

3. Alternativas existentes em face da incompatibilidade entre os institutos
Ao enfrentar a matéria, o Superior Tribunal de Justiça assentou que negar a recuperação judicial da SPE com patrimônio de afetação não corresponde a deixá-la num “limbo jurídico”, sem que se possa socorrer de um meio de proteção legal quando estiver enfrentando um momento de instabilidade.
De início, é de suma importância considerar a sistemática oferecida pela Lei de Condomínios e Incorporações tem como objetivo possibilitar o prosseguimento da obra, submetendo sempre à vontade da maioria absoluta dos adquirentes de unidades imobiliárias qualquer alteração relacionada ao empreendimento afetado.
Oportuno salientar que, recentemente, sobreveio a Medida Provisória nº 1.085/2021, convertida na Lei nº 14.382/2022, a qual trouxe consigo algumas alterações à Lei nº 4.591/1964, visando não só simplificar custos e burocracias, mas alcançar maior transparência aos adquirentes e, também, facilitar os procedimentos de retomada de obras ou liquidação do patrimônio de afetação caso o incorporador não consiga concluir o empreendimento.
Dentre as diversas alterações advindas, cita-se, como exemplo, a obrigatoriedade de que a Comissão de Representantes, regulada no art. 50, da Lei nº 4.591/1964, seja constituída em até seis meses do registro da incorporação. Ainda, a possibilidade de destituição extrajudicial do incorporador em razão de insolvência ou paralisação da obra, permitindo a notificação do incorporador via Registro de Imóveis, para que este transfira a posse do empreendimento à Comissão de Representantes, conforme dispõe o art. 43, inc. VI, da Lei nº 4.591/1964.
Em qualquer dos casos, há que se dizer que toda e qualquer decisão envolvendo o futuro do empreendimento passará pelos adquirentes, atribuindo à Comissão de Representantes a legitimidade e incumbência de defender os interesses comuns dos contratantes, podendo, inclusive, vender ativos (terrenos, unidades em estoque e demais direitos integrantes do patrimônio de afetação) para saldar dívidas e viabilizar a conclusão do empreendimento. Assim, a Comissão de Representantes tem um papel relevante na administração do patrimônio de afetação, inclusive em relação à atuação nos casos de inadimplência ou falência do incorporador imobiliário.
Como já exposto, caso decretada a falência ou insolvência do incorporador, remete-se à Comissão de Representantes a obrigação de convocar assembleia geral para definir sobre a continuidade da obra ou a liquidação do patrimônio de afetação, lembrando-se, sempre, que este não será atingido pelos efeitos da falência.
Em casos extremos, em que não reste alternativa ao grupo empresarial, senão o ingresso do pedido de recuperação judicial, revolve-se, assim, à discussão sobre a possibilidade de submissão da SPE com patrimônio de afetação ao processo. Partindo da premissa que a Corte Superior assentou entendimento quanto à impossibilidade de participação da SPE com patrimônio de afetação na recuperação judicial do incorporador, surgem as dúvidas sobre quais os caminhos possíveis a serem percorridos.
Em situações desta espécie, dentro do microssistema instituído pela Lei de Condomínios e Incorporações está inserido o procedimento extrajudicial para solução de crises, através do qual competirá aos adquirentes decidirem quais serão as medidas a serem seguidas, independentemente da intervenção judicial, para solucionar os problemas de desequilíbrio econômico-financeiro no empreendimento afetado.
Pode haver situação em que o empreendimento afetado esteja com as obras paralisadas ou atrasadas por período superior a 30 dias. Se isso acontecer, os adquirentes podem notificar a incorporadora, extrajudicialmente, via Registro de Imóveis, sendo esta uma das inovações da nova Lei nº 14.382/2022, ou requerer em juízo que o incorporador seja notificado a dar continuidade às obras, sob pena de destituição.
Outro instrumento contido na legislação é a destituição do incorporador imobiliário, em conformidade com os arts. 31-F, §§ 1º e 2º e 43, VII, §§ 1º a 5º, da Lei nº 4.591/64. Neste ponto, cabe enfatizar que a composição entre o incorporador e os adquirentes, seja ela judicial ou extrajudicial, para resolver as questões relacionadas à administração e à conclusão do empreendimento, pode servir como um caminho a ser proposto pelo próprio incorporador, adiantando-se a uma decisão drástica por parte dos adquirentes, tornando-se, assim, uma alternativa plausível em um cenário em que seja identificado por ele a dificuldade ou impossibilidade de prosseguimento das obras ou conclusão do empreendimento.
Além disso, há casos em que os adquirentes não tomam as medidas necessárias para destituir o incorporador, e esta, por seu turno, não reúne condições para concluir o empreendimento afetado com recursos próprios. Nessas circunstâncias, após a notificação prevista no inc. VI do art. 43 da Lei de Incorporação Imobiliária, os credores da SPE também podem pedir em juízo a convocação da assembleia geral, para que os então adquirentes decidam o destino do empreendimento afetado, ressalvado o direito de a instituição financiadora convocar a referida assembleia sem intervenção judicial, conforme dispõem os § 1º e 2º, do art. 31-F, da Lei nº 4.591/1964.
Da leitura da legislação específica, percebe-se que o legislador inseriu todo um procedimento extrajudicial de resolução de problemas decorrentes de desequilíbrio econômico da incorporação imobiliária, que, independentemente de intervenção judicial, os adquirentes, através da Comissão de Representantes, poderão administrar e decidir o futuro do empreendimento, com autonomia do processo de falência e recuperação judicial do grupo empresarial a qual a SPE com patrimônio de afetação pertence.
Por fim, há que se dizer que a matéria sob enfoque ainda é tímida no que se refere aos caminhos possíveis de serem seguidos tanto pela SPE em situação de crise, como pelos adquirentes, e que dependerá da análise do caso concreto, do estágio atual das obras e peculiaridades atinentes ao empreendimento específico a definição da melhor estratégia para as partes interessadas, tornando oportunas as reflexões sobre o tratamento do patrimônio de afetação frente ao processo de recuperação judicial do grupo empresarial.
Considerações finais
O presente estudo visou demonstrar os fundamentos que justificam a impossibilidade de submissão da SPE com patrimônio de afetação na recuperação judicial do grupo empresarial. A ausência de previsão legal específica sobre o tema resulta em um campo fértil para a doutrina e a jurisprudência, que vêm se consolidando pelo Superior Tribunal de Justiça no sentido de que os institutos jurídicos da recuperação judicial e do patrimônio de afetação são totalmente incompatíveis entre si.
Diante de todo o exposto, é possível concluir que, pelo tema ainda ser novo na jurisprudência, não há precedentes suficientes que tratam de forma definitivamente aprofundada sobre a matéria, sendo necessária a observação de todos os elementos essenciais do caso concreto para tomada de providências que visem controlar resultados negativos e resguardar – tanto quanto possível – o interesse de todos os envolvidos.
Especificamente nos casos em que o contexto de crise motivar pedido de recuperação judicial do grupo empresarial que seja formado por SPE com patrimônio de afetação, deverão ser analisadas com as devidas cautelas as alternativas existentes no caso concreto, considerando o tratamento que deve ser dado ao regime de afetação no procedimento recuperacional.
- “Maior crise sanitária da nossa época”, O globo. Publicado em 17.03.2020. Disponível em: https://www2.
senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/570211/noticia.html?sequence=1&isAllowed=y ↩︎ - Villar, Marcela; Rosa, Artur. “Número de pedidos de recuperação judicial tem alta de 70% em 2023”.
Valor econômico. Publicado em 05.02.2024. Disponível em: https://valor.globo.com/impresso/noticia/2024/02/05/numero-de-pedidos-de-recuperacao-judicial-tem-
-alta-de-70-em-2023.ghtml. ↩︎ - Chalhub, Melhim Namem. Incorporação Imobiliária. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019 [Edição Kindle], p. 89. ↩︎
- Research xp. “Joint Venture: entenda o que é”. Expert xp. Publicado em:13.03.2023. Disponível em: https://conteudos.xpi.com.br/aprenda-a-investir/relatorios/joint-venture/ ↩︎
- Chalhub, Melhim N. Incorporação Imobiliária, op. cit. ↩︎
- Scavone Jr., Luiz Antonio. Direito Imobiliário: Teoria e Prática. Rio de Janeiro: Forense, 2022, [Edição Kindle], p. 166. ↩︎
- Chalhub, Melhim N. Incorporação Imobiliária, op. cit. ↩︎
- Coelho, Fabio Ulhoa. Novo manual de direito comercial: direito de empresa. 32ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021 [Edição Kindle], p. 297. ↩︎
- “Recurso Especial. Empresarial. Sociedades de Propósito Específico. Incorporação Imobiliária. Patrimônio de Afetação. Recuperação Judicial. Incompatibilidade. […] 2. Cinge-se a controvérsia a definir se a recuperação judicial é compatível com as sociedades de propósito específico com patrimônio de afetação, que atuam na atividade de incorporação imobiliária. 3. As sociedades de propósito específico que atuam na atividade de incorporação imobiliária e administram patrimônio de afetação estão submetidas a regime de incomunicabilidade, criado pela Lei de Incorporações, em que os créditos oriundos dos contratos de alienação das unidades imobiliárias, assim como as obrigações vinculadas à atividade de construção e entrega dos referidos imóveis, são insuscetíveis de novação, sendo, portanto, incompatível com o regime da recuperação judicial. […]” (STJ. REsp: 1.958.062, Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Decisão Publicada em 28/09/2022). ↩︎
- Art. 319 do CPC; arts. 48 e 51, da Lei nº 11.101/2005. ↩︎
- Chalhub, Melhim N. Incorporação Imobiliária, op. cit. ↩︎
- Rizzardo, Arnaldo. Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022 [Edição Kindle], p. 796. ↩︎
- Chalhub, Melhim N. Incorporação Imobiliária, op. cit. ↩︎
- Sacramone, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2024 [Edição Kindle], p. 19. ↩︎
- Coelho, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas, op. cit. ↩︎
- Chalhub, Melhim N. Incorporação Imobiliária, op. cit. ↩︎
