
O desafio de concluir obras paralisadas: a prevalência do interesse coletivo e a lógica da afetação patrimonial
Resumo
O artigo tem como objetivo explanar, a partir de experiências profissionais por nós colhidas, no escritório Santos Silveiro, com base na legislação e jurisprudência aplicáveis a espécie, as medidas e os caminhos a serem trilhados coletivamente pelos adquirentes ao efeito de viabilizar a efetiva retomada e conclusão de obras paralisadas sob o regime da incorporação imobiliária. Ponto de destaque neste tema espinhoso é como se articula a prevalência do interesse coletivo em prol da retomada e conclusão das obras. A partir desta questão central, examina-se como a lógica da afetação patrimonial pode ser utilizada para viabilizar a retomada e conclusão das obras, além de aspectos práticos, em especial, o procedimento de destituição do incorporador, atualizado pela Lei nº 14.382/2022.
Introdução
As incorporações imobiliárias têm como propósito fundamental a alienação de unidades autônomas em construção com o pagamento antecipado do preço de aquisição pelos adquirentes. A notável dinâmica da incorporação promove o desenvolvimento das cidades, gera milhares de empregos, viabiliza a aquisição de imóveis pelo público em geral, sendo fundamental para a redução do déficit habitacional, ao assegurar o direito à moradia para muitas famílias brasileiras.
O ciclo virtuoso da incorporação, no entanto, não está imune a riscos e adversidades. A incorporação é uma atividade sensível, que envolve a execução e legalização de obras civis com a captação de recursos da economia popular e, comumente, de instituições financeiras, estando, portanto, sujeita a dificuldades. Além disso, nem todos os players do mercado apresentam condição econômica sólida e estável, o que por vezes também repercute negativamente na incorporação imobiliária.
Fato é que o malogro da atividade, nos casos mais críticos, pode levar à paralisação continuada das obras. O abandono do canteiro de obras, na maioria das vezes, decorre da má gestão dos recursos da incorporação, comumente associada a outros fatores, como a crise empresarial do incorporador e/ou de seu grupo econômico. O caso mais emblemático, no particular, foi a falência da empresa Encol no ano de 1999, então a maior incorporadora do País, que paralisou cerca de 700 (setecentas) obras, atingindo diretamente mais de 40.000 (quarenta mil) famílias de adquirentes.
Felizmente, a partir de então, a legislação e a própria jurisprudência avançaram significativamente, no sentido de munir a coletividade de adquirentes de meios mais eficazes de fiscalização e proteção com relação à universalidade de bens e direitos que compõem a incorporação imobiliária, notadamente o instituto do patrimônio de afetação, trazido com a Lei nº 10.931/2004 e as recentes alterações da Lei nº 14.382/2022, as quais introduziram novas e importantes disposições na Lei de Condomínios e Incorporações Imobiliárias (Lei nº 4.591/1964).
Dentro deste contexto, o presente artigo tem como objetivo explanar, com base nas experiências profissionais por nós colhidas, em casos semelhantes, e com base na legislação e jurisprudência aplicáveis a espécie, as medidas e os caminhos que poderão ser trilhados coletivamente pelos adquirentes ao efeito de viabilizar a efetiva retomada e conclusão de obras paralisadas sob o regime da incorporação imobiliária.
1. A prevalência do interesse coletivo em prol da retomada e conclusão das obras
Ao longo dos anos, fomos muitas vezes procurados no escritório por adquirentes que enfrentavam dificuldades e preocupações decorrentes da continuada paralisação de obras. As narrativas e vivências passavam, normalmente, por investimentos malsucedidos, prejuízos financeiros severos, frustração de expectativas e sonhos com relação à moradia, afetando planos familiares de toda a ordem.
Aos prejuízos financeiros objetivos decorrentes da paralisação das obras, adicionam-se comumente o sentimento de tristeza e de culpa pelo equívoco cometido com a aquisição, por vezes, gerando crises familiares, o agravamento de doenças de natureza emocional, dentre diversos outros infortúnios oriundos da frustração pelo mau negócio realizado.
Com efeito, a aquisição de imóvel na planta traz consigo muitos planos e expectativas. É natural, portanto, que o insucesso do negócio imobiliário carregue consigo ingredientes de natureza emocional. Referido contexto fático, no entanto, não deve impedir a adoção das medidas cabíveis e necessárias, devendo estas serem guiadas pela racionalidade, visando a redução dos prejuízos a esta altura já existentes.
Ao se deparar com a paralisação continuada das obras e constatada a ausência de perspectivas de solução por parte do incorporador e/ou do seu grupo econômico, os adquirentes, querendo viabilizar a retomada e conclusão das obras, deverão agir coletivamente, como verdadeiros protagonistas.
A viabilização da retomada e conclusão de obras, nesses casos, exige uma atuação proativa dos adquirentes, que envolve não apenas a fiscalização preconizada pela legislação do patrimônio de afetação (art. 31-A e seguintes da Lei nº 4.591/1964), mas, sobretudo, um trabalho de união, perseverança e conjugação de esforços.
Um dos elementos centrais para a adoção das medidas jurídicas tendentes à retomada de obras é a existência (ou eleição) da Comissão de Representantes dos adquirentes, investida de poderes de representação para defesa dos direitos coletivos e individuais homogêneos dos adquirentes em tudo o que interessar ao bom andamento da incorporação.
O interesse coletivo é traço marcante do contrato de incorporação imobiliária e condiciona a sua funcionalidade econômica, pois, a despeito da individualidade dos contratos de comercialização das unidades, as obrigações e os direitos gerados por cada um deles são comuns a todos os adquirentes e ao incorporador, que formam uma comunidade vinculada por uma afinidade semelhante àquela que vincula os membros de uma sociedade.
É importante que se compreenda, neste sentido, que os avanços legislativos ocorridos na Lei nº 4.591/1964, especialmente nos últimos anos, tiveram como norte privilegiar a coletividade de adquirentes da incorporação imobiliária, e não os adquirentes isoladamente considerados. Daí também porque a adoção, pelos adquirentes, de medidas puramente individuais, descontextualizadas do interesse coletivo, não seja o caminho mais apropriado e eficaz ante a paralisação continuada das obras.
Valiosas, nesse sentido, as ponderações de Nelson Ferreira Pinto, de que a funcionalidade econômica e social do contrato de incorporação deve ser considerada do ponto de vista da coletividade dos contratantes e não dos interesses meramente individuais de seus integrantes: “daí decorre que o inadimplemento de uma parte ou o desfazimento unilateral por qualquer dos contratantes representa prejuízo para o empreendimento e para a comunidade de adquirentes, comprometendo a realização da função social do contrato e a segurança jurídica”.1
Parece-nos, aliás, que foi justamente sob esta ótica que a Lei dos Distratos (Lei nº 13.786/2018) autorizou, em caso de resolução contratual por força do inadimplemento do adquirente, a retenção de até 50% (cinquenta por cento) das importâncias pagas, com a restituição apenas após o habite-se, nos casos de incorporações submetidas ao regime do patrimônio de afetação, desestimulando, assim, o desfazimento contratual individual, e privilegiando a preservação dos recursos hábeis à construção.2

De fato, a Lei nº 4.591/1964 não visa simplesmente assegurar o direito de um ou outro adquirente, do incorporador, ou do agente financiador. Acima dos direitos meramente individuais, o que o microssistema das incorporações visa proteger é o interesse social e coletivo, qual seja: o de viabilizar a conclusão do empreendimento imobiliário e a entrega das unidades aos seus adquirentes.
Conforme o notável voto da Ministra Nancy Andrighi em decisão paradigmática sobre o tema, “apesar de o legislador não excluir o direito de qualquer adquirente pedir individualmente a rescisão do contrato e o pagamento de indenização frente ao inadimplemento do incorporador, o espírito da Lei nº 4.591/64 se volta claramente para o interesse coletivo da incorporação, tanto que seus arts. 43, III e VI, e 49, autorizam, em caso de mora ou falência do incorporador, que a administração do empreendimento seja assumida por comissão formada pelos adquirentes das unidades, cujas decisões, tomadas em assembleia, serão soberanas e vincularão a minoria.”3
Muitas vezes, no anseio de recuperar os prejuízos injustamente causados em decorrência do abandono do canteiro de obras pelo incorporador, os adquirentes pleiteiam, isoladamente, a rescisão judicial dos seus compromissos contratuais de compra e venda para a obtenção da restituição das importâncias pagas com os acréscimos legais e contratuais devidos e o retorno das partes ao estado anterior.
Trata-se de medida legítima e juridicamente cabível, afinal, o adquirente vinha honrando, tempestivamente, com as suas obrigações contratuais e, por outro lado, o incorporador veio a descumprir suas obrigações de conclusão das obras e entrega da(s) unidades, inadimplindo o contrato, o que permite, em tese, a resolução contratual, acrescida das penalidades aplicáveis, nos termos do art. 43-A, parágrafo primeiro, da Lei nº 13.786/2018.
Ocorre que, na maioria dos casos em que assim procede o adquirente, embora logre êxito na esfera judicial, não alcança efetivar, na prática, o seu direito à restituição das importâncias pagas, vendo frustrada a execução, por não encontrar patrimônio hábil a responder pelo seu crédito. No jargão popular, é o conhecido “ganhou”, mas não “levou”. Isto porque o incorporador que paralisa as obras normalmente já se encontra com o seu patrimônio geral comprometido e gravado por outras dívidas e obrigações.
Além disso, a rescisão contratual acarreta outro efeito normalmente nefasto. O adquirente, ao ter seu contrato rescindido judicialmente, deixa de ostentar a qualidade de adquirente de determinada(s) unidade(s) autônoma(s), passando a ostentar a qualidade de credor do incorporador, o que lhe retira o direito de perseguir a retomada das obras coletivamente e o direito do recebimento das unidades originalmente compromissadas.
Enfrentamos, não raramente, casos em que os condôminos que rescindiram judicialmente os seus contratos, ao se depararem com a mobilização dos adquirentes para a retomada e conclusão das obras, pretendem participar das assembleias e até mesmo deliberar em prol da retomada das obras e recebimento de unidades, o que não mais se faz possível. Com efeito, as unidades autônomas que foram rescindidas devem obrigatoriamente voltar a compor o estoque do empreendimento, haja vista o rompimento do vínculo contratual antes existente.
A tomada de decisão do adquirente pela rescisão contratual, portanto, deve vir antecedida de detida análise e reflexão jurídica e negocial acerca das suas consequências e conveniência à vista das particularidades do caso concreto, sobretudo quanto às reais possibilidades de que seja efetivamente alcançada a restituição dos valores investidos.
Não se ignora que existam casos pontuais que o caminho da extinção do vínculo contratual possa revelar-se apropriado. Há inclusive situações em que, embora o incorporador faltoso não ostente patrimônio suficiente para arcar com eventual responsabilização, se faça juridicamente possível a responsabilização de terceiros coobrigados e/ou garantidores, por força da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica do incorporador faltoso, mediante a aplicação do Código de Defesa do Consumidor.4
Também já enfrentamos diversos casos em que se apresentou um conflito de interesses dentro do próprio grupo de adquirentes. Em um desses casos, oriundo de uma grande obra na cidade de Porto Alegre, a maior parte do grupo de adquirentes conjugou esforços para coletivamente viabilizar a retomada e conclusão das obras, na linha do preconizado no art. 43 da Lei nº 4.591/1964. Ou seja, ante a paralisação injustificada do empreendimento, os adquirentes de unidades aprovaram em assembleia geral a destituição da incorporadora e a assunção, pelos condôminos, da administração da incorporação e término da obra, passando a contar com as unidades do estoque (unidades não alienadas) para fins de viabilizar a conclusão das obras. Entretanto, outro grupo, composto da minoria de adquirentes, mas também dotado de representatividade, ajuizou substanciosa ação judicial com pleitos indenizatórios contra a incorporadora faltosa, requerendo a indisponibilidade de todas as unidades do estoque do empreendimento, como forma de assegurar as indenizações pretendidas em virtude do atraso das obras, pleito este aparentemente legítimo e que foi inicialmente deferido pelo magistrado da causa.
Estabeleceu-se, então, o confronto entre os próprios condôminos com relação à destinação das unidades não vendidas: serviriam estas como ativo para viabilizar a conclusão do empreendimento (como pretendia o grande grupo) ou serviriam como ativo para ressarcir o grupo minoritário que primeiramente ajuizara uma ação judicial para ressarcimento dos seus prejuízos particulares. Na oportunidade, o magistrado da causa, em sintonia com a legislação de regência, conferiu ganho de causa ao grande grupo que figurava na lide como terceiro interessado, entendendo que “a manutenção do gravame das unidades não alienadas, que serviu de resguardo aos interesses dos autores e dos demais adquirentes em um primeiro momento, acaba por prejudicar os interesses de toda a comunidade, inclusive dos próprios autores, pois dificulta o término da obra o que acredita-se seja o interesse último de todos os adquirentes”.5
Certo é que, em regra, deve prevalecer nas incorporações imobiliárias o interesse coletivo em prol da viabilização da retomada e conclusão das obras, em detrimentos dos interesses meramente individuais.
2. A lógica da afetação patrimonial a ser utilizada para viabilizar a retomada e conclusão das obras
Ante o enfrentamento de casos de paralisação de obras, inclusive em decorrência da falência do incorporador imobiliário, a legislação de regência foi evoluindo desde a promulgação da Lei de Condomínios e Incorporações Imobiliárias, no já distante ano de 1964.
Especialmente relevante, nesse sentido, como instrumento de proteção coletiva dos adquirentes é a afetação do acervo das incorporações imobiliárias, regulamentada pelos arts. 31A a 31F da Lei nº 4.591/1964, com a redação dada pelo art. 53 da Lei nº 10.931/2004.
A afetação permite a separação patrimonial de cada empreendimento, tornando-o incomunicável em relação ao patrimônio geral da incorporadora e aos seus demais empreendimentos e cria um regime de vinculação de receitas. Assim, o ativo do patrimônio de afetação só responde pelas suas respectivas obrigações. Esse regime especial blinda a incorporação dos efeitos da falência ou mesmo da paralisação injustificada das obras, inclusive investindo a Comissão de Representantes dos adquirentes de poderes para prosseguir com a obra.
A teoria da afetação, como se sabe, atende à necessidade de privilegiar determinadas situações merecedoras de tutela especial. Para tal, admite-se a segregação, dentro de um mesmo patrimônio, de determinados bens ou núcleos patrimoniais que, identificados por sua procedência ou destinação, são encapsulados no patrimônio geral do titular para que fiquem excluídos dos riscos de constrição por dívidas ou obrigações estranhas à sua destinação, como são os casos dos bens objeto de fideicomisso, o bem de família (Código Civil, arts. 1.711 e seguintes), o imóvel de moradia da família (Lei nº 8.009/1990), entre outros.6
A lógica da afetação é assegurar a autossustentação do empreendimento, mediante a vinculação das receitas e ativos em montante suficiente para execução de toda a obra, delimitando os riscos a que estão expostos os adquirentes de imóveis “na planta” e munindo-os de ferramental capaz de assegurar a conclusão das obras, em caso de crise do incorporador.
Muito embora a legislação condicione a afetação patrimonial à efetiva opção do incorporador pela adoção do regime especial (art. 31-A), nosso entendimento é que a segurança jurídica decorrente da afetação patrimonial se constitui em elemento ínsito ao regime da incorporação e à destacada função social que desempenha. Desta forma, a lógica da afetação patrimonial – protetiva da coletividade de adquirentes – deve ser observada, indistintamente, nos casos de paralisação das obras, ao efeito de que os ativos da incorporação sejam segregados dos demais passivos da incorporadora e direcionados ao cumprimento das obrigações daquela incorporação específica.7

Cite-se, aliás, que foi justamente essa lógica que viabilizou a retomada e conclusão de uma série de empreendimentos mesmo antes da promulgação da Lei nº 10.931/2004, conforme precedentes judiciais que reconheceram o direito da coletividade de adquirentes, os quais, certamente, inspiraram a proteção legislativa. Nesse sentido, voltamos a citar outro importante trecho do julgamento paradigmático sobre a matéria, proferido pela Terceira Turma do STJ, de Relatoria da Min. Nancy Andrighi, Recurso Especial nº 1.115.605 – RJ, cuja ementa é esclarecedora: “(…) Embora o art. 43, III, da Lei nº 4.591/64 não admita expressamente excluir do patrimônio da incorporadora falida e transferir para comissão formada por adquirentes de unidades a propriedade do empreendimento, de maneira a viabilizar a continuidade da obra, esse caminho constitui a melhor maneira de assegurar a funcionalidade econômica e preservar a função social do contrato de incorporação, do ponto de vista da coletividade dos contratantes e não dos interesses meramente individuais de seus integrantes.”8
Outrossim, não faz sentido que – após a adoção do sistema legal protetivo à coletividade – se venha fazer uma indevida restrição à sua aplicação, o que contrariaria a essência da Lei nº 4.591/1964 e relegaria parte dos adquirentes lesados – não beneficiários do regime da afetação – à perda das importâncias pagas, praticamente sepultando as chances de retomada das obras.
Na medida em que a constituição, ou não, do patrimônio de afetação é uma opção que cabe única e exclusivamente ao incorporador, não pode ela inviabilizar o prosseguimento das obras pelos condôminos, sob pena de desnaturar o microssistema das incorporações9, e jogar às traças todos os adquirentes de imóveis do incorporador faltoso.
Sensível a esta realidade, aliás, o Código de Processo Civil prevê, no art. 833, XII, a impenhorabilidade dos créditos oriundos da alienação de unidades imobiliárias, sob o regime da incorporação imobiliária, vinculados à execução da obra, independente do fato de ter ou não sido constituído patrimônio de afetação. Tal disposição, reforça e reitera o sistema de proteção patrimonial da incorporação, resguardando os créditos da incorporação para que se atinja o objetivo final da conclusão das obras.
Em caso envolvendo a paralisação das obras de um edifício com 76 (setenta e seis) unidades em Curitiba, advogamos justamente no sentido de que, inobstante a inexistência da averbação do patrimônio de afetação, deveria haver tratamento semelhante em favor dos condôminos, resguardando-se os ativos do empreendimento como forma de assegurar a sua conclusão pela Comissão de Representantes. Na oportunidade, o TJPR veio a confirmar em sede recursal a decisão que antecipou os efeitos da tutela para permitir as medidas aptas ao prosseguimento das obras.10
Como se pode observar, portanto, em seguimento à posição jurisprudencial consagrada pelo Superior Tribunal de Justiça, deve ser respeitada a lógica da afetação patrimonial para viabilizar a retomada e conclusão de obras inacabadas, mediante o resguardo dos ativos do próprio empreendimento, ainda que não averbado o patrimônio de afetação na sua matrícula.
3. Aspectos práticos visando à retomada de obras
Realçada a prevalência do interesse coletivo e a lógica legislativa que assegura a segregação dos ativos das incorporações imobiliárias, vale destacar algumas medidas práticas que envolvem a retomada de obras, as quais preferencialmente devem ser adotadas antes da destituição do incorporador.
O trabalho inicial perpassa inicialmente pela localização dos adquirentes e pelo entendimento acerca do contexto jurídico e negocial que envolve aquele empreendimento específico. A experiência demonstra que cada empreendimento e cada grupo de pessoas tem as suas particularidades, de modo que não existe solução uníssona e integralmente replicável, sendo altamente aconselhável perquirir com a maior profundidade possível o caso concreto.
A partir de um trabalho de investigação e radiografia inicial, poder-se-á compreender e depreender informações absolutamente relevantes do empreendimento, tais como: (i) a quantidade de unidades autônomas alienadas pelo incorporador, as unidades pertencentes ao estoque do empreendimento (unidades não alienadas); e as unidades objeto de rescisões judiciais; (ii) a existência de financiamento imobiliário para a construção, ou mesmo a existência de outros credores e obrigações oriundos da própria incorporação imobiliária; (iii) a eventual existência de litígios judiciais tendo como objeto a incorporação ou o terreno sobre o qual a edificação está assentada; (iv) a análise técnica acerca da situação das obras; (v) a regularidade da obra perante os órgãos municipais, no que tange a validade das licenças obtidas, bem como a situação fiscal perante a municipalidade; (vi) a existência, ou não de permutantes por área construída e os direitos e obrigações contraídos; dentre tantas outras aferições importantes para avaliação do caso concreto.
Há empreendimentos em que referidas informações são disponibilizadas com mais facilidade, seja pela participação ativa do próprio incorporador (que naturalmente detém as informações a respeito do empreendimento), seja pela preexistência de relatórios do patrimônio de afetação (nas incorporações sujeitas à afetação nos termos do art. 31-A e seguintes da Lei nº 4.591/1964, incluído pela Lei nº 10.931/2004). Há, no entanto, outros casos, em que as informações são absolutamente desconhecidas, o que exige maior sacrifício para a recomposição da situação fática.
É aconselhável que as medidas e avaliações ora preconizadas sejam feitas previamente às medidas estritamente legais – as quais serão abordadas a seguir – inclusive porque a deliberação acerca do caminho a ser seguido pelos adquirentes não deve prescindir da compreensão, ainda que preliminar, acerca da realidade jurídica e financeira do empreendimento em questão.
A viabilidade da retomada das obras passa também pela contabilização dos ativos do empreendimento, corporificados pelos saldos devedores dos adquirentes (contratos não quitados) e pelas unidades não vendidas (unidades do estoque da incorporação), em contraposição aos seus passivos, notadamente, o orçamento para a conclusão das obras e passivos correlatos, tais como os impostos incidentes sobre as próprias unidades autônomas e eventuais outros créditos que devam ser satisfeitos.
Frisa-se, nesse sentido, que um empreendimento valorizado e com atratividade no mercado é um dos fatores decisivos para a viabilização da continuidade das obras.

São corriqueiras as situações de ausência de recursos financeiros, ou mesmo desinteresse, por parte de alguns adquirentes em honrar com os saldos devedores das suas próprias unidades, o que, em princípio, reduz a liquidez de recursos para conclusão das obras. Trata-se de situação comumente enfrentada em decorrência do tempo decorrido entre a aquisição da unidade e a deliberação pela continuidade da obra, o que muitas vezes altera a condição econômica do adquirente e as suas necessidades, anseios e projetos de vida.
Embora tal situação seja a priori mais um dificultador, na prática, a situação, na maioria das vezes, se resolve não com o leilão previsto pela lei de regência (art. 63 da Lei nº 4.591/1964), mas sim mediante a cessão de direitos e obrigações para terceiros adquirentes (normalmente investidores imobiliários ou mesmo fundos de investimento). Essas operações permitem que o adquirente original receba parcial ou totalmente os valores investidos com a aquisição das unidades, se desincumbindo das obrigações contratuais, as quais passam a ser assumidas por terceiro contratante, que visualiza uma oportunidade de negócio imobiliário, assumindo os riscos da aquisição de fração ideal em um empreendimento inacabado. Obviamente, tais operações não prescindem de cautelas jurídicas e se tornam viáveis a partir da existência de um caminho que aponte para a viabilidade da retomada e conclusão das obras.
Sob a perspectiva dos passivos, é altamente recomendável a realização de uma perícia na obra, ao efeito de avaliar a higidez das estruturas construídas, bem como o percentual de obras efetivamente edificado, inclusive como forma de delimitar responsabilidades entre o incorporador faltoso e o grupo de adquirentes, enquanto incorporador substituto. A radiografia a respeito das obras também pode servir como elemento hábil a definir responsabilidades no que tange aos recolhimentos previdenciários. Ao longo dos anos, obtivemos algumas decisões importantes de modo a viabilizar a averbação da conclusão das obras, mediante a apresentação da CND parcial, atinente ao período a partir do qual os condôminos retomaram as obras, sem prejuízo da responsabilidade do incorporador faltoso pelos débitos previdenciários do período pretérito, na linha do preconizado pelo STJ.11
No que tange à incidência dos impostos, notadamente o IPTU, é importante que seja avaliada a legislação local, para averiguar eventual tratamento fiscal diferenciado nos casos que envolvam a paralisação das obras. Especificamente, na cidade de Porto Alegre, clientes para os quais advogamos postularam com êxito12, a alteração da legislação municipal de IPTU, com a aprovação da Lei Complementar nº 683/201113, que determinou o benefício de alíquota predial ao terreno cuja edificação não foi concluída em casos de destituição por abandono das obras, tendo os adquirentes, em condomínio, assumido a sua conclusão. Trata-se de medida sensível do Poder Público, que reduziu expressivamente a carga tributária nesses casos extremos de paralisação das obras, e que passou a servir como elemento que contribui para a retomada das obras, evitando os esqueletos urbanos em meio à cidade.
A radiografia inicial acerca da situação do empreendimento cujas obras foram paralisadas também viabiliza, por vezes, a adoção de medidas urgentes, inclusive ao efeito de evitar a dilapidação dos seus ativos, de modo a assegurar sejam resguardados meios suficientes para a retomada das obras. Nesse sentido, enfrentamos um caso, na cidade de Curitiba/PR, em que, não obstante as obras estivessem paralisadas e abandonadas, o incorporador permanecia divulgando a venda das unidades, o que, a um só tempo, gerava riscos de prejuízo a outros terceiros adquirentes, como também implicava na redução dos ativos hábeis a viabilizar a conclusão das obras. Nessa ocasião, ajuizou-se ação cautelar em caráter antecedente, por meio da qual se fez possível averbar a indisponibilidade das frações ideais correspondentes às unidades não alienadas, evitando a dilapidação dos ativos, e resguardando, assim, os ativos necessários para a conclusão das obras.14
A deliberação pela destituição do incorporador pelos adquirentes, portanto, não deve prescindir, ainda que de forma preliminar, do exame acerca da viabilidade da retomada das obras, sob o prisma jurídico e financeiro, assim como da adoção de medidas jurídicas urgentes e necessárias, hábeis a preservar os interesses coletivos.
4. O procedimento de destituição do incorporador. Atualização pela Lei nº 14.382/2022
Por ocasião da paralisação das obras, caso ainda não tenha sido devidamente eleita a Comissão de Representantes, o primeiro passo formal a ser dado pelo grupo de adquirentes é promover a eleição de dito órgão de representação, oportunidade em que também poderão aprovar a notificação judicial da incorporadora para a retomada da obra no prazo de 30 (trinta) dias. Para tanto, os adquirentes deverão convocar assembleia geral para eleição da Comissão de Representantes, com fulcro no art. 50 da Lei 4.591/1964, cuja deliberação será oponível a todos.
Devidamente eleita, a Comissão de Representantes deverá, então, conduzir as medidas a serem tomadas em relação à incorporadora, a qual será notificada judicialmente para retomar as obras do empreendimento em 30 (trinta) dias contados da notificação que lhe for encaminhada. Desatendida a notificação, poderá o incorporador ser destituído pela maioria absoluta dos votos dos adquirentes, sem prejuízo da responsabilidade civil ou penal que couber.
Será, então, necessária a convocação de nova assembleia para deliberar pela destituição do incorporador a qual depende dos votos da maioria absoluta dos adquirentes das unidades, nos termos do art. 43, VI, da Lei nº 4.591/1964, o qual refere que “desatendida a notificação, poderá o incorporador ser destituído pela maioria absoluta dos votos dos adquirentes”.15
Serão, assim, duas assembleias, uma que delibera pela notificação do incorporador para retomar a obra em 30 (trinta) dias sob pena da sua destituição e outra, em não havendo a efetiva retomada das obras pela incorporadora, que delibera pela sua destituição.
Portanto, é a vontade da maioria, emanada da assembleia, que ditará o rumo do processo de retomada e conclusão das obras do empreendimento. Considerando o poder cogente dessas deliberações, crucial que sejam tomados todos os cuidados com a regularidade das suas convocações, a verificação dos quóruns de instalação e de deliberação.
Consigna-se, por fim, que, nos termos da Lei nº 14.382/2022, da ata da assembleia que delibera pela destituição da incorporadora deverão constar as informações previstas no art. 43, § 2º, da Lei nº 4.591/1964 (nomes do adquirentes, qualificação, respectivas frações ideais adquiridas com a indicação do título aquisitivo), sendo que uma vez registrada no cartório de títulos e documentos, constituirá título hábil para averbação da destituição do incorporador na matrícula do empreendimento, e para a implementação das medidas judiciais ou extrajudiciais necessárias, tais como: (a) a imissão da Comissão de Representantes na posse do empreendimento; (b) a investidura da Comissão de Representantes na administração e nos poderes para a prática dos atos de disposição que lhe são conferidos pelos arts. 31-F e 63 da Lei nº 4.591/1964; (c) a inscrição do respectivo condomínio no CNPJ; e (d) quaisquer outros atos necessários à efetividade da norma instituída no caput do art. 43 da Lei nº 4.591/1964, inclusive para prosseguimento da obra ou liquidação do patrimônio da incorporação.
Tais disposições introduzidas na Lei nº 4.591/1964, por força da Lei nº 14.382/2022, visam a melhor operacionalização do procedimento de destituição da retomada de obras, indicando caminho a ser seguido de forma extrajudicial, sem prejuízo da adoção das medidas judiciais que venham a se fazer necessárias.
Considerações finais
É fundamental para a retomada de obras paralisadas a união e a conjugação de esforços dentro do grupo de adquirentes, respeitando a prevalência do interesse coletivo em detrimento dos interesses individuais, na forma preconizada pela Lei nº 4.591/1964.
A legislação e jurisprudência avançaram substancialmente nos últimos 20 (vinte) anos, ao efeito de dotar os adquirentes de meios eficazes de viabilizar a retomada e conclusão das obras, sobretudo a partir da lógica da afetação patrimonial, com a preservação dos ativos da própria incorporação.
Contudo, a legislação deve ser interpretada, de forma finalística, ao efeito de viabilizar, na prática, o espírito da legislação de regência, no sentido de conferir maior segurança jurídica aos consumidores coletivamente considerados, especialmente para viabilizar a retomada e conclusão das obras, em casos de crise do incorporador.
- Pinto, Nelson Ferreira. O contrato imobiliário e a legislação tutelar de consumo. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 244. ↩︎
 - Art. 67-A, § 5º: Quando a incorporação estiver submetida ao regime do patrimônio de afetação, de que tratam os arts. 31-A a 31-F desta Lei, o incorporador restituirá os valores pagos pelo adquirente, deduzidos os valores descritos neste artigo e atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, no prazo máximo de 30 (trinta) dias após o habite-se ou documento equivalente expedido pelo órgão público municipal competente, admitindo-se, nessa hipótese, que a pena referida no inciso II do caput deste artigo seja estabelecida até o limite de 50% (cinquenta por cento) da quantia paga. ↩︎
 - STJ, Recurso Especial nº 1.115.605, 3ª Turma, Relatora Min. Nancy Andrighi, DJe 18/04/2011. ↩︎
 - Vale lembrar que o Código de Defesa do Consumidor também se aplica ao Condomínio de Adquirentes, por força da equiparação à condição de consumidor trazida pelo parágrafo único do art. 2º, cuja norma estabelece expressamente que serão equiparados ao consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo, na linha do REsp n.º 1.560.728, 3ª Turma, Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 28/10/2016. ↩︎
 - Decisão proferida pelo Dr. Cairo Roberto Rodrigues Madruga nos autos do Processo nº 1201771- 72.2008.8.21.0001, que tramitou na 1ª Vara Cível do Foro Central de Porto Alegre/RS. ↩︎
 - Caio Mário da Silva Pereira. Condomínio e Incorporações. Atualizado por Sylvio Capanema e Melhim Chalhub. 13ª ed. São Paulo: Forense, p.350. ↩︎
 - Há um pensamento crescente defendido pelo registrador paulistano Flaviano Galhardo, no sentido que o terreno após o Registro da Incorporação fica desde logo afetado a uma destinação específica, qual seja, a construção e entrega das unidades aos adquirentes. (Galhardo, Flaviano apud Santos, Flauzilino Araújo. Condomínio e Incorporações no Registro de Imóveis – Teoria e Prática. São Paulo: Mirante, 2012, p. 274). ↩︎
 - STJ, Recurso Especial nº 1.115.605, 3ª Turma, Relatora Min. Nancy Andrighi, DJe 18/04/2011. ↩︎
 - Santos, Lourdes Helena Rocha dos. “A destituição da incorporadora pelos condôminos – da legislação à prática”. Santos Lourdes H. R; Castro, Fabio Caprio L. de (Org). Temas atuais em direito imobiliário. Porto Alegre: Santos Silveiro, 2018, p. 05-21”. ↩︎
 - “(…) Decisão que concedeu a antecipação dos efeitos da tutela para o fim de deferir série de medidas aptas ao prosseguimento de obra pela
associação de adquirentes. Presença dos requisitos do art. 300 do CPC. Indevida paralisação pela incorporada e estado de abandono e deterioração
do empreendimento. Solução que se amolda aos mecanismos de proteção da Lei 4.591/64 e está em consonância com precedentes do
STJ. Preservação da função social do contrato”. (TJPR, Agravo de Instrumento nº 0045296-29.2020.8.16.0000, 7ª Câmara Cível, Rel. Desa. Joeci Machado Camargo). ↩︎ - Neste sentido o seguinte precedente: “(…) A lei protege a boa-fé dos adquirentes que comercializam com empresas construtoras, não só como mecanismo de justiça, mas também como instrumento de garantia, de forma que as relações contratuais na área da construção civil se desenvolvam num sistema de segurança. (…). De acordo com o inciso VII do art. 30 da Lei 8.212/91, exclui- se da responsabilidade solidária perante a Seguridade Social o adquirente de prédio ou unidade imobiliária que realizar a operação com empresa de comercialização ou incorporador de imóveis. Assim, conclui-se pela ilegitimidade da recusa da CND em relação aos condôminos adquirentes de unidades imobiliárias da obra de construção civil incorporada na forma da Lei 4.591/64, para fins de averbação no registro de imóvel, devendo ser exigidas do construtor-incorporador eventuais dívidas previdenciárias”. (REsp nº 1485379/SC, 2ª Turma, Rel. Ministro Og Fernandes, DJe 04/02/2015). ↩︎
 - Trata-se de projeto reivindicado pela Associação dos Adquirentes de Unidades do Edifício Residencial e Comercial Horizons, na pessoa do seu então Presidente, Sr. Jairo Schneider, e apresentado à Câmara Municipal pelo Vereador Reginaldo Pujol. ↩︎
 - Art. 1º, que conferiu a seguinte redação ao caput do § 16 do art. 5º da Lei Complementar nº 7, de 7/12/1973: “Será lançado com benefício de alíquota predial, a partir do exercício seguinte ao da aprovação
do projeto arquitetônico, o terreno cuja edificação não for concluída em virtude de falência do empreendedor ou de sua destituição por abandono de obra, tendo os adquirentes, em condomínio, assumido a conclusão da obra, observado ainda o seguinte”. ↩︎ - Trata-se da ação cautelar de caráter antecedente com pedido liminar nº 0014072-75-2017.8.16.0001, que tramitou na cidade de Curitiba/PR. ↩︎
 - Art. 43. Quando o incorporador contratar a entrega da unidade a prazo e preços certos, determinados ou determináveis, mesmo quando pessoa física, ser-lhe-ão impostas as seguintes normas: (…) VI – se o
incorporador, sem justa causa devidamente comprovada, paralisar as obras por mais de 30 dias, ou retardar-lhes excessivamente o andamento, poderá o Juiz notificá-lo para que no prazo mínimo de 30 dias as reinicie ou torne a dar-lhes o andamento normal. Desatendida a notificação, poderá o incorporador ser destituído pela maioria absoluta dos votos dos adquirentes, sem prejuízo da responsabilidade civil ou penal que couber, sujeito à cobrança executiva das importâncias comprovadamente devidas, facultando-se aos interessados prosseguir na obra. ↩︎ 
