
A repercussão das enchentes no Rio Grande do Sul na prorrogação dos prazos contratuais para a conclusão dos empreendimentos imobiliários
Resumo
O artigo trata da possibilidade da prorrogação do prazo de entrega das obras, além dos 180 (cento e oitenta) dias de tolerância contratualmente estabelecidos, em função da situação de calamidade pública provocada pelas enchentes no Rio Grande do Sul, em maio de 2024. Propõe-se, inicialmente, uma análise da distinção sobre caso fortuito interno e externo, cuja importância é fundamental para estabelecer se o fato ocorrido integra ou não o risco do negócio. Em seguida, passa-se a examinar os elementos a serem considerados ao efeito de gerar a prorrogação do prazo para entrega das obras no contexto das enchentes. Por fim, apresenta-se um estudo jurisprudencial, no âmbito do TJRS, de ações envolvendo questões de caso fortuito em um cenário análogo, cujo pano de fundo foi a pandemia de COVID. Com base neste estudo, são apresentadas algumas sugestões aos incorporadores sobre estratégias a serem adotadas frente ao eventual atraso de obra.
Introdução
O ano de 2024 ficará marcado na história dos gaúchos por uma catástrofe climática sem precedentes, que afetou a todos, direta ou indiretamente. Uma quantidade jamais vista de chuvas provocou a maior enchente da história e a destruição de parte considerável do Rio Grande do Sul.
Os efeitos e repercussões são incalculáveis, muitas vidas foram perdidas, lares e negócios aniquilados e milhares de pessoas foram desalojadas, passando a viver em abrigos e em casas de familiares ou amigos. Grande parte da indústria e do comércio do Estado ficaram embaixo da água, trabalhadores ilhados e estradas completamente destruídas.
Certo é que o trabalho de reconstrução será longo. Se algo de marcante e positivo tiraremos da tragédia foi a solidariedade e a união, não só do povo gaúcho, mas como também do povo brasileiro, que auxiliou de maneira comovente as pessoas mais necessitadas.
Como não poderia ser diferente, as incorporações imobiliárias no Rio Grande do Sul também foram duramente afetadas pelo estado de calamidade pública provocada pelas enchentes, inclusive com relação ao cronograma estabelecido para entrega das obras. É certo que algumas em maior medida que outras.
Nesse contexto, trataremos acerca dos reflexos das enchentes nos prazos contratuais para entrega das unidades imobiliárias nas incorporações em desenvolvimento no Estado. Os instrumentos contratuais de promessa de compra e venda, em regra, possuem uma data final para entrega das obras, cumulado com um prazo de tolerância de 180 (cento e oitenta) dias, sendo possível sua prorrogação em situações de caso fortuito e/ou força maior.
O ponto nevrálgico, como veremos, gira em torno da possibilidade ou não da prorrogação do prazo de entrega das obras em função da situação de calamidade pública provocada pelas enchentes no Rio Grande do Sul para além dos 180 (cento e oitenta) dias de tolerância.1 Tal questão é de extrema relevância, visto que, após escoado o prazo estabelecido contratualmente para entrega das unidades, incide a multa contratual e a possibilidade de resolução do contrato por parte do adquirente, nos termos do art. 43-A da Lei de Condomínios e Incorporações Imobiliárias.2
Para explorar este tema, que suscita divergências, abordamos, primeiramente, a importante distinção entre caso fortuito interno e externo. Em seguida, realçamos a importância da análise do caso concreto e os elementos aptos a gerar a prorrogação do prazo para entrega das obras no caso das enchentes no Rio Grande do Sul.
Por fim, apresentamos um estudo jurisprudencial sobre o tema a partir de julgados enfrentando um cenário jurídico que guarda semelhanças, quando o pano de fundo relacionado ao caso fortuito e/ou força maior foi a pandemia originada pelo COVID.
1. A importante distinção entre caso fortuito interno e externo. Apuração se o fato jurídico ocorrido integra ou não o risco do negócio.
Como ponto de partida na discussão, há que se fazer referência ao que disciplina o Código Civil, em seu art. 393: “O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado”. O referido artigo é complementado em seu parágrafo único: “O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”
Em outros termos, os eventos qualificados como caso fortuito e força maior são legalmente previstos como situações que afastam a responsabilidade civil em razão da desconfiguração do nexo causal entre determinada conduta ou atividade do agente e o prejuízo auferido.3
O rompimento da conduta e do nexo causal opera-se tanto nas hipóteses de responsabilidade contratual ou extracontratual, como também nas relações reguladas pelo Código de Defesa do Consumidor4, que é o caso da grande maioria dos contratos de promessa de compra e venda em incorporações imobiliárias.
O caso fortuito é definido como o evento totalmente imprevisível decorrente de ato humano ou de evento natural. Já a força maior constitui um evento previsível, mas inevitável ou irresistível, decorrente de uma ou outra causa.5
Em que pese a distinção conceitual, o que importa para efeitos da exclusão da responsabilidade civil é se o evento correlato tem ou não relação com risco do empreendimento ou risco-proveito, ou seja, com a atividade desenvolvida pelo suposto responsável. É preciso constatar se o fato entra ou não no chamado risco do negócio (eventos internos e externos).
No caso fortuito interno, o risco representado pelo fato é inerente à conduta ou à atividade do agente, de modo que deve responder quando dele decorra o dano.

O caso fortuito externo (ou força maior) é aquele que decorre de causa completamente estranha à conduta do agente, e por isso causa exoneração de responsabilidade. Nesse ponto, convém observar que a exterioridade da causa é condição que se afirma para excluir a imputação de responsabilidade. Assim, para que se admita a exoneração de responsabilidade, a causa deve ser estranha, externa ao agente.
Nessa linha doutrinária, aprovou-se, na V Jornada de Direito Civil, o Enunciado nº 433, prevendo que: “o caso fortuito e a força maior somente serão considerados como excludentes da responsabilidade civil quando o fato gerador do dano não for conexo à atividade desenvolvida”.
Ademais, seguindo essa mesma ordem de ideias, o STJ firmou entendimento que somente o caso fortuito externo exclui o dever de indenizar por parte do fornecedor.6
O exame sobre se determinado evento é capaz de romper o nexo de causalidade e excluir o dever de indenizar deve ser feito casuisticamente. Nesse sentido, o fato jurídico ocorrido, isto é, as enchentes e inundações vivenciadas no Rio Grande do Sul, constitui caso fortuito externo? Tratando-se de caso fortuito externo, este é capaz de prorrogar o prazo para entrega das obras, sem o dever de indenizar? Ainda, esta prorrogação valeria por quanto tempo? Quais elementos são úteis para apuração do caso concreto? Buscaremos explorar e responder tais questionamentos nos itens abaixo.
2. As enchentes no Rio Grande do Sul e os elementos aptos a gerar prorrogação do prazo para a entrega das obras
Não se questiona que a situação ocorrida no Rio Grande do Sul decorre de um evento de dimensões extraordinárias. Foi o maior evento climático da história do Estado.
Dessa forma, pela excepcionalidade, magnitude e ineditismo do fato, a tragédia provocada pelas enchentes no Rio Grande do Sul não tem fato conexo com a atividade desenvolvida pelas incorporadoras, e deve ser interpretada como caso fortuito externo. Logo, tal fato jurídico e suas repercussões devem ser analisados com base em tal premissa.
Tratando-se de caso fortuito externo, o fato jurídico decorrente das enchentes é capaz, em tese, de prorrogar o prazo para a entrega das obras, sem o dever de indenizar. Entretanto, há que se apurar minuciosamente as repercussões no âmbito da construção civil, de que forma o empreendimento foi afetado concretamente e quais as dificuldades encontradas pelas incorporadoras para cumprir com o cronograma de obras estabelecido.
O SINDUSCON-RS realizou um comunicado oficial sinalizando um potencial atraso nas construções, considerando a dificuldade de fornecimento de materiais e equipamentos, da logística e das dificuldades dos empregados no acesso em canteiros de obras. O referido órgão apontou que diante do cenário de incertezas, estima-se um impacto de prazo na ordem de 90 (noventa) dias, dependendo da fase em que se encontrar o empreendimento.
É preciso, então, formular a questão: a existência da situação de calamidade pública provocada pelas enchentes autoriza automaticamente a prorrogação dos prazos contratuais por determinado período?
As obras foram afetadas em graus e intensidade diferentes, de modo que o prazo de eventual prorrogação da data de entrega das unidades aos adquirentes, por certo, dependerá da efetiva comprovação, no caso concreto, dos reais impactos no cronograma das obras, a partir de uma vinculação objetiva e responsável dos efeitos da tragédia climática com o retardo do cronograma das obras, em prestígio à boa-fé contratual.
Neste contexto, destaca-se a incidência do Código do Consumidor sobre a grande maioria das relações envolvendo promessas de compra e venda entre adquirentes e incorporadoras.
O diploma consumerista é regido por uma série de princípios de protecionismo ao consumidor, bem como de deveres ao fornecedor, no caso o incorporador. Entre eles, destaca-se o dever de informação e o ônus da prova.

No caso, uma vez ocorrida a situação de calamidade pública, com base nos arts. 12, §3º, e 14, §3º, do CDC, compete ao incorporador realizar a prova de que as enchentes prejudicaram o cronograma de entrega de obras e com qual intensidade, independentemente da inversão do ônus probatório estabelecido no art. 6º, VIII, do CDC.7
Além disso, em função do dever de informação estabelecido no CDC, recomenda-se que os incorporadores prestem as devidas informações aos consumidores sobre os reflexos ocasionados em função da situação das enchentes e, se for o caso, informem a prorrogação do prazo previsto para a entrega das obras.
Pontua-se, também, que nem todo atraso de obra poderá socorrer-se do estado calamidade pública provocada pelas enchentes no Rio Grande do Sul como forma de evitar o pagamento de eventuais indenizações. Portanto, obras que já estavam atrasadas ou que a causa do atraso comprovadamente não seja as repercussões provocadas pela calamidade pública não poderão ter o mesmo tratamento que os empreendimentos efetivamente afetados.
Tal entendimento também está alinhado com o que dispõe o Código Civil sobre a boa-fé contratual, em seu art. 422: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”
Nesse sentido, é recomendável que as incorporadoras afetadas pelas enchentes realizem um dossiê sobre as dificuldades enfrentadas para cada um de seus empreendimentos em função da situação ocasionada pela calamidade.
Não é possível elencar um rol exaustivo dos documentos a serem reunidos pelas incorporadoras para demonstrar o impacto das enchentes e a necessidade da prorrogação do prazo contratual para entrega das obras, visto que é necessário um exame detalhado em cada caso. Entretanto, a título de sugestão, contribui para esta finalidade a apresentação de documentos comprobatórios de que: (i) os prestadores de materiais/serviços estavam impedidos ou com dificuldades de enviar materiais e/ou prestadores para obra; (ii) os funcionários foram, de forma direta ou indireta, afetados pelas enchentes restando impossibilitados de trabalhar ou, até mesmo, que foram concedidas férias aos mesmos em função da situação; (iii) as obras vinham em um ritmo que indicava a previsão do cumprimento do prazo estabelecido, de forma que o atraso no cronograma tem ligação direta com as repercussões do estado de calamidade (mediante laudo técnico assinado por engenheiro); e (iv) o empreendimento ficou alagado, através de ata notarial por mídias eletrônicas (por meio de fotos e vídeos).
Conforme se verá no tópico seguinte, as circunstâncias e elementos fáticos que comprovam, no caso concreto, que o empreendimento foi afetado pela calamidade pública – e com qual grau de intensidade – tendem a ser determinantes para o deslinde do tema caso a situação venha a ser levada à juízo.
3. Análise jurisprudencial sobre a possibilidade de prorrogação do prazo para entrega das obras em função do estado de calamidade pública
A possibilidade, ou não, de prorrogação do prazo estabelecido contratualmente em virtude de caso fortuito ou força maior é fonte histórica de acaloradas discussões no Poder Judiciário. É sabido que, na grande maioria dos casos em que há a alegação de caso fortuito e força maior pelo incorporador, desprovidas de elementos e circunstâncias excepcionais, o Judiciário tem rechaçado a tentativa, atribuindo ao incorporador as consequências da mora contratual.
Recentemente, tivemos um evento global, que foi a pandemia gerada pela COVID. Foi um evento inesquecível e dramático, de proporções planetárias. Como não poderia ser diferente, causou reflexos em uma quantidade inestimável de relações contratuais.
Na oportunidade, a construção civil também se viu afetada em função da situação de calamidade pública vivenciada. Na ocasião, em função das restrições sanitárias, por determinado período, todas as obras foram afetadas em seu cronograma, sendo a situação regrada por cada município por meio de decretos que foram reestabelecendo as atividades do setor, considerado como de atividade essencial.
Como já se passou algum tempo daquele dramático período, são conhecidos os resultados de diversas demandas que foram submetidas aos Tribunais, em que se litigou sobre os reflexos da situação de calamidade pública gerada pela pandemia nas relações contratuais. Debateu-se nos Tribunais brasileiros a questão da pandemia como caso fortuito e/ou força maior, enquanto fato jurídico capaz de gerar a prorrogação do prazo para entrega das obras para além dos 180 (cento e oitenta) dias de tolerância.
Tendo em vista que o tema do presente artigo, em regra, será julgado no âmbito de jurisdição da justiça comum do Rio Grande do Sul, privilegiou-se a análise jurisprudencial do TJRS, a fim de que possa servir de bússola, ou no mínimo de referência, para os casos oriundos das enchentes de 2024 no Estado.
Apresentamos abaixo um quadro com 06 (seis) decisões do TJRS, as quais identificamos como as mais representativas entre as 137 decisões que aludem à matéria dos contratos de promessa de compra e venda frente à pandemia.8 Adotamos, como sistemática, a indicação: (1) de um ponto de destaque da decisão, (2) se houve prorrogação ou não no prazo de entrega das obras e, por fim, (3) em havendo prorrogação, qual foi a dilatação do prazo.
| Ponto de Destaque | Prorrogação do prazo | Tempo |
| “Ocorre que a alegação genérica de dificuldades impostas pela pandemia, não justifica o atraso da entrega do imóvel objeto da demanda, sendo incapaz de atrair, concretamente, a figura de caso fortuito ou de força maior.” (Apelação Cível nº 5003658-44.2022.8.21.4001/RS, Relatora Desa. Rosana Broglio Garbin, 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio grande do Sul, julgada em 28/04/2024). | NÃO | – |
| “Assim, considerada a redução do fluxo de funcionários na construção civil, bem como as medidas sanitárias e de distanciamento, além da escassez de matéria prima advinda dos reflexos da pandemia também no setor industrial, e principalmente considerando que inúmeros prazos foram suspensos durante o período correspondente à entrega da unidade autônoma, a sentença está correta ao agregar um prazo de suspensão de mais 180 dias àquele previsto no contrato com a cláusula de tolerância, de tal modo que quando da entrega das chaves à parte demandante, em 19-7-2021, inexistia mora da construtora.” (Apelação Cível nº 5004945-62.2021.8.21.2001, Relator Des. Carlos Cini Marchionatti, 20ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, julgada em 28/06/2023). | SIM | 180 DIAS |
| “Quanto à invocação da pandemia como fato fortuito, deve ser rejeitada a alegação da apelante, porque o prazo previsto para entrega do imóvel findou em junho de 2020 (setembro, se considerada a tolerância), o que determina que, à data do reconhecimento do estado de calamidade pública, em março/2020 (Decreto Legislativo n. 6, de 2020), as obras já deveriam estar em estado final, e não há notícia de que até este momento o imóvel tenha sido plenamente terminado. A correlação não implica causalidade, e a construtora não fez demonstrar que o atraso ocorreu em virtude da pandemia, apenas que esta ocorreu em concomitância ao inadimplemento já instalado no contrato.” (Apelação Cível nº 5023189-32.2020.8.21.0010/RS, Relatora Desa. Ketlin Carla Pasa Casagrande, 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, julgada em 22/04/2024). | NÃO | – |
| “Desta forma, pertinente ressaltar que o atraso não adveio de escassez de materiais ou mão de obra, mas sim de proibição em si de prosseguimento de cronograma por circunstância alheia à atuação da requerida, o que veda a condenação da ré ao pagamento de penalidades por atraso, sobretudo na situação em exame, visto que já ressaltando que a entrega inclusive somente sofreu atraso de aproximadamente um mês e meio.” (Apelação Cível nº 5006129-53.2021.8.21.2001/RS, Relatora Desa. Walda Maria Melo Pierro, 20ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, julgada em 07/12/2022). | SIM | 45 DIAS |
| “Ocorre que embora a pandemia do Covid-19 possa ter prejudicado o desenvolvimento de inúmeras atividades, cabia à demandada esclarecer quais impactos se deram sobre o seu cronograma de obras, o que não fez, vindo aos autos apenas alegação genérica de que eventual atraso seria decorrente de caso fortuito ou força maior.” (Apelação Cível nº 5005697-96.2021.8.21.0008/RS, Relatora Desa. Rosana Broglio Garbin, 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, julgada em 31/03/2022). | NÃO | – |
| “Podemos depreender do contexto fático discutido nos autos que restou ocorrida a força maior, visto que no período de conclusão da obra supracitada, o mundo foi impactado com a pandemia da Covid-19, o que impossibilitou a continuação da obra por significativo tempo no ano de 2020. A apelada logrou êxito em demonstrar que diversos decretos impediram a continuidade dos serviços de construção civil no estado do Rio Grande do Sul, tendo o setor sido paralisado no mês de março de 2020. (…) Portanto, consoante decisão exarada pelo juízo de primeiro grau, a qual encontra eco na jurisprudência desta Câmara e desta Corte, sendo caso de aplicar 180 dias a mais no prazo disposto pela cláusula de tolerância, tendo a apelada entregue as chaves dentro deste lapso mencionado. (Apelação Cível nº 5007500-52.2021.8.21.2001/RS, Relator Des. Glênio José Wasserstein Hekman, 20ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, julgada em 24/04/2024). | SIM | 180 DIAS |
Da análise jurisprudencial, depreende-se que não há um entendimento uníssono no Tribunal gaúcho. Como destacado nos tópicos anteriores, a análise do caso concreto é ponto central para a tomada de decisão dos julgadores. O fato de a obra ter sido comprovadamente afetada pela situação de calamidade pública foi fator determinante para que os julgadores tomassem a decisão de dilatar ou não o prazo de entrega das obras para além do prazo de tolerância.
O papel da prova em um processo judicial é da maior relevância possível. O Código de Processo Civil estabelece, em seu art. 373, que: “O ônus da prova incumbe: I – ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor”. Por sua vez, o CDC facilita a inversão do ônus da prova para os casos que envolvam consumidores, transferindo ao fornecedor (no caso incorporador) se desvencilhar do ônus probatório.
Portanto, a fase pré-processual, isto é, antes do litígio, com a seleção dos documentos necessários e a produção da prova pertinente é fundamental. A simbiose entre o cliente e seus advogados é determinante para que ao final a parte obtenha a tutela jurisdicional pretendida.
Em resumo, ao analisar a jurisprudência do TJRS, verificamos que há decisões em sentidos diferentes, não se podendo precisar qual será o entendimento do Judiciário gaúcho em relação as enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul. O que se pode antever é, justamente, a importância do papel da prova, que deve ser articulada segundo o caso concreto. Quanto mais detalhados e robustos os elementos que comprovem as dificuldades enfrentadas pela incorporadora em seu empreendimento – em decorrência da calamidade – maiores serão as suas chances de que seja judicialmente admitida a dilação do prazo contratual para a conclusão das obras, sem ensejar reparação indenizatória aos adquirentes.
Considerações finais
Entendemos que a tragédia provocada pelas enchentes no Rio Grande do Sul não tem fato conexo com a atividade desenvolvida pelas incorporadoras, e deve ser interpretada como caso fortuito externo, passível, em tese, da extensão do prazo contratual, além do prazo de tolerância. E isto porque é difícil imaginar que exista alguma obra no Estado do Rio Grande do Sul que não tenha, de alguma forma, sido impactada pela tragédia das enchentes, seja diretamente pela incursão das águas, seja pela ausência ou redução de recursos humanos, insumos, logística e infraestrutura pública mínima.
A prorrogação da data de entrega das unidades aos adquirentes, contudo, dependerá da efetiva comprovação, no caso concreto, dos reais impactos no cronograma das obras, a partir de uma vinculação objetiva e responsável dos efeitos da tragédia climática com o retardo do cronograma das obras, em prestígio à boa-fé contratual.
O Judiciário não apresenta uma resposta única, como vimos nos julgados envolvendo a pandemia da COVID. O que podemos depreender é a importância da análise casuística e da produção da competente prova no âmbito judicial.
Nesse sentido, inclusive em função do dever de informação estabelecido no Código de Defesa do Consumidor, recomenda-se que os incorporadores produzam as provas cabíveis à espécie e prestem as devidas informações aos adquirentes sobre os efeitos da tragédia climática no cronograma da obra específica, informando-os justificadamente acerca da eventual necessidade de prorrogação do prazo para entrega das obras, medidas estas que poderão ser determinantes para evitar eventual futura discussão judicial sobre a matéria, ou mesmo para bem sustentá-la em juízo.
- Silveiro, João Paulo; Silveiro, Roberto Santos. “A Tragédia provocada pelas enchentes no RS e sua repercussão nos prazos contratuais para a conclusão dos empreendimentos imobiliários”. Migalhas Edilícias. Publicado em 12.06.2024. Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-edilicias/409164/enchentes-no-rs-e-sua-repercussao-para-os-empreendimentos-imobiliarios ↩︎
- Lei 4.591/64, art. 43-A. “A entrega do imóvel em até 180 (cento e oitenta) dias corridos da data estipulada contratualmente como data prevista para conclusão do empreendimento, desde que expressamente
pactuado, de forma clara e destacada, não dará causa à resolução do contrato por parte do adquirente
nem ensejará o pagamento de qualquer penalidade pelo incorporador”. ↩︎ - Miragem, Bruno. Direito Civil: Responsabilidade Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p.130. ↩︎
- Ibidem ↩︎
- Tartuce, Flávio. Manual de Direito Civil: Volume único. 12ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 486. ↩︎
- STJ, Recurso Especial nº 1.450.434, 4ª Turma, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 09/11/2018 ↩︎
- Guerra, Alexandre Dartanhan de Mello. “O caso fortuito e a não incidência do dever de indenizar nas relações de consumo”. Guerra, Alexandre Dartanhan de Mello; Malfatti, Alexandre David Malfatti.
Reflexões de magistrados paulistas nos 25 anos do Código de Defesa do Consumidor (Org). São Paulo: Escola Paulista de Magistratura, 2015. Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/download/EPM/Publicacoes/ObrasJuridicas/cdc12.pdf?d=636680533763406696 ↩︎ - Tomando-se por base as palavras-chave “promessa de compra e venda” e “COVID”, foram encontradas 137 decisões do TJRS até o mês de julho de 2024. Adicionando-se as palavras-chave “caso fortuito” e
“força maior”, o número de decisões restringiu-se a 22. Dentre estas últimas, selecionamos os casos mais representativos do entendimento do Tribunal gaúcho sobre a matéria. ↩︎
